Discursos do novo papa indicam que não haverá reformas

Em seus primeiros discursos, em que fez referências ao diabo, o novo pontífice parece indicar que vai manter os dogmas da Igreja durante seu pontificado

por Gustavo Fonseca 30/03/2013 11:25
Gabriel Bouys/AFP
Papa Francisco cumprimenta o povo na Praça de São Pedro, em Roma: busca de aproximação real com a comunidade dos fiéis (foto: Gabriel Bouys/AFP)
É fato há muito tempo conhecido o poder aglutinador de identificar inimigos. Em períodos de crise, grupos sociais, países e mesmo instituições se valem do artifício de apontar um mal externo – real ou imaginário – que os ameace a fim de cerrar fileiras. Da Alemanha nazista em sua cruzada insana contra os judeus, passando pela Guerra Fria e pela sanha argentina pelas Ilhas Malvinas contra os ingleses, nos anos 1980 e agora, até os apelos recentes dos líderes bolivarianos da Venezuela de unir o povo contra uma suposta ameaça dos Estados Unidos, esse recurso eficaz tem se mostrado recorrente na história contemporânea. E por isso não deveria surpreender que o papa Francisco tenha se valido dele logo em seus primeiros pronunciamentos como líder máximo da Igreja.

Em seu sermão inaugural como pontífice, na quinta-feira, 14 de março, Francisco alertou os católicos sem meias palavras: “Aquele que não reza ao Senhor reza ao diabo. Quando não anunciamos Jesus Cristo, anunciamos o mundanismo do diabo, o mundanismo do demônio”. No dia seguinte, em reunião com os cardeais, o papa Francisco manteve o ataque ao inimigo da Igreja: “Não cedam ao pessimismo, não passemos adiante a amargura que o diabo nos oferece diariamente, pensemos em Cristo”. Nitidamente, discursos aglutinadores em tempos de debandada dos fiéis e racha na cúpula católica – e contra um velho conhecido da cristandade.

Não se trata, porém, de um recurso novo de Jorge Mario Bergoglio. Em 2010, em sua luta contra a legalização do casamento gay na Argentina, o então arcebispo de Buenos Aires declarou que o projeto era "uma manobra do diabo", uma "pretensão destrutiva do plano de Deus". Afirmações que revelam não apenas a provável manutenção de dogmas da Igreja Católica, mas sobretudo o que espera do novo papa o colégio cardinalício que o escolheu com mais de 90 dos 115 votos, segundo noticiou a imprensa italiana.

Segundo estudos etimológicos, demônio e demônios são traduções dos termos gregos daimon e daimones, que, na literatura helenística, significavam uma divindade de grau menor. Na tradução do Antigo Testamento, os termos referem-se a deuses de outros povos que não o judeu; a ídolos pagãos e a coisas vãs. Além disso, é sabido que na Antiguidade as mais diferentes culturas dotavam todos os aspectos da natureza de espíritos bons ou maus, e as doenças seriam causadas justamente por daimones. Assim, com o passar do tempo, esses espíritos foram se personificando, dando origem a anjos, demônios e potestades. Influenciada pelas civilizações vizinhas, a judaica acabou por incorporar esses elementos.

Com o avanço científico ao longo dos séculos, os sinais de possessão demoníaca acabaram por receber explicações racionais, como o diagnóstico de doenças mentais, e dessa maneira o demônio foi perdendo espaço como a personificação do mal, apesar de a crença nele ser mantida por vários segmentos não só de católicos e cristãos de modo geral, mas também de religiosos de outras matizes, como nos cultos afro-brasileiros. Com essa fresta ainda aberta, vez ou outra acontecimentos culturais acabam por trazer à tona essa figura, como o filme O exorcista na década de 1970, depois do qual o número de casos de “possessão demoníaca” aumentou exponencialmente nos Estados Unidos.

No Brasil, o maior desmitificador da ideia de demônios é, como o papa Francisco, um jesuíta: o padre espanhol Oscar Quevedo, autor de Antes que os demônios voltem. Nesse livro, com base em amplo conhecimento filosófico-teológico, o padre Quevedo investiga as origens dos daimones na Antiguidade e, valendo-se do saber científico, desconstrói as múltiplas atividades e poderes atribuídos a demônios. Sinal de sua relevância, a publicação foi censurada por quase 10 anos, período no qual os superiores de padre Quevedo mandaram-no silenciar sobre esses estudos. Vencidas as resistências, o livro acabou sendo lançado no fim dos anos 1980.

Questionado sobre as declarações do papa, o teólogo laico italiano Brunetto Salvarani disse ao jornal Corriere della Sera que “há quem veja no diabo a própria personificação do mal e quem fale dele como uma identidade simbólica que representa nossa incapacidade de fazer o bem". O sentido com que o papa Francisco usa o termo deve ficar mais claro à medida que seu pontificado avançar, mas tudo leva a crer que se trata da primeira acepção. Um sinal nada promissor num momento em que a Igreja Católica é instada a se modernizar e a responder mais adequadamente às demandas deste século.

Nome da paz

No sábado, 16 de março, contudo, em seu primeiro pronunciamento à imprensa desde que assumiu o cargo mais alto da Igreja, o papa Francisco adotou um discurso progressista ao justificar a escolha do nome papal dizendo que, logo que foi eleito no conclave, o cardeal brasileiro dom Cláudio Hummes o teria alertado a não se esquecer dos pobres. “Aquela palavra entrou na minha cabeça. Lembrei-me imediatamente de Francisco de Assis, que é um nome da paz. Assim tive a ideia do nome que surgiu em meu coração.” E completou, em referência a São Francisco de Assis: “O homem da beleza, o homem da paz, que ama e protege a criatura, neste momento em que não temos uma relação tão boa. O homem que nos dá esse espírito de paz. Ah, como eu gostaria de uma Igreja pobre, para os pobres”.

Na missa do domingo de ramos, o papa Francisco voltou ao tema e pediu aos católicos que evitassem a corrupção e a ganância, aproximando-se dos humildes, dos pobres, dos esquecidos. Mais um sinal de que, em vez de buscar no diabo um inimigo capaz de aglutinar a Igreja, é possível (e preferível) que o novo pontífice se proponha a levar os fiéis a se unir na luta contra a pobreza e as injustiças em todo o mundo; no combate à destruição da natureza, que São Francisco de Assis tanto amou; na defesa da beleza e da paz como direitos de todas as pessoas, independentemente de nacionalidade e do credo que seguem. Ideias modernas e avançadas cujas origens remontam justamente à América Latina, berço da Teologia da Libertação.

Em entrevista à revista alemã Der Spiegel, nosso mais destacado representante dessa corrente católica, Leonardo Boff, disse que muitos se surpreenderão com o que Francisco fará. “Para isso, (o papa) precisará de uma ruptura com as tradições, deixar para trás a Cúria corrupta do Vaticano para abrir passagem para uma Igreja universal. (...) Francisco de Assis representa uma Igreja dos pobres e dos oprimidos, responsabilidade perante o meio ambiente e rejeição ao luxo e à ostentação." Em artigo publicado na imprensa nacional semana passada, Leonardo Boff reafirmou sua esperança de novos tempos na Igreja, dizendo que este “será um papado pastoral e de serviço à caridade e à unidade, e não mais um papado do poder jurídico absolutista”.

Para Boff, “a grave crise moral que atravessa a Igreja fez com que o conclave elegesse alguém com autoridade e coragem para fazer profundas reformas na Cúria e para inaugurar uma forma de exercício do poder papal que seja mais conforme ao espírito de Jesus e adequado à nova consciência da humanidade”. Palavras que manifestam o típico otimismo dos novos tempos que brota em momentos de ruptura com o passado – neste caso advinda da inesperada renúncia do agora papa emérito Bento XVI. No entanto, deve-se perguntar até que ponto o papa Francisco de fato é alguém com autoridade e coragem para fazer as profundas reformas na Cúria que Boff espera. O que se apreende de seus primeiros discursos, com as referências ao demônio, é que o novo pontífice manterá os dogmas da Igreja, o que já se esperava dele. Mas a questão em aberto, e que enche de esperança Boff e boa parte da cristandade, é como Francisco traduzirá em ações seu desejo de “uma Igreja pobre, para os pobres”. A Cúria corrupta do Vaticano certamente é seu primeiro e maior obstáculo nesse projeto.

De acordo com Leonardo Boff, “importa que o papa Francisco seja um João XXIII do Terceiro Mundo, um ‘papa buono’”. Enviado como ovelha ao meio de lobos, demanda-se de Francisco ser prudente como as serpentes, mas inofensivo como as pombas, tal qual Jesus advertiu seus apóstolos ao espalhá-los para divulgar a boa-nova. Que o primeiro papa latino-americano de fato volte seu olhar para os países subdesenvolvidos e faça da Igreja uma instituição dos pobres, dos injustiçados e dos desvalidos, como ensinou e viveu São Francisco de Assis. Nem que para isso tenha de promover a divisão, em vez de estabelecer a paz, como o fez o próprio Cristo.

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