Nova geografia musical

por 23/03/2013 00:13
Bené Fonteles

O poeta Zé Dantas é parceiro de Gonzaga em duas canções viscerais: uma na poética da denúncia que é Vozes da seca, a primeira canção que poderíamos chamar de protesto, mais de uma década antes que Geraldo Vandré, Sergio Ricardo ou Carlos Lira lançassem suas músicas contra a ditadura militar e a grave situação social no país. Vozes da seca é a primeira canção que dá voz ao cidadão nordestino que não quer esmola, mas trabalho digno e justiça social: “Mas doutor uma esmola/ a um homem que é são/ ou lhe mata de vergonha/ ou vicia o cidadão”.

É também de Zé Dantas a letra de Siri jogando bola, inspirado nas emboladas dos cantadores nos desafios públicos, letra que requer do intérprete agilidade e destreza vocal que só Gonzaga e o genial paraibano Jackson do Pandeiro possuíam. É uma letra que fala pela primeira vez em Coca-Cola, que “dá um arroto de lascar”, muito antes de Caetano Veloso, que apenas tomava-a na marcha-rancho modernizada Alegria, alegria.

Zé Dantas só não engoliu o pão que o capeta amassou, quando o apresentador de TV Flávio Cavalcante quebrou o disco com a gravação de Gonzaga em seu polêmico programa, porque Dantas, médico culto, escreveu artigo em jornal carioca mostrando, com elegância, a ignorância do apresentador que subestimou a importância da letra e da música criticada para divulgar um ritmo e uma poética do Nordeste. E tudo com grande inovação de linguagem e uma interpretação genial e gostosa, que só Gonzaga tinha sabedoria interpretativa para aliar à poesia ou à música alheia, com sua verve criativa cheia de improviso e falas inesperadas, antes que o rap e o hip-hop invadissem a cena contemporânea.

Humberto Teixeira quando se encontra com Gonzaga, em 1947, faz com ele, de uma sentada, muitos baiões, xotes e xaxados, como Baião, verdadeiro manifesto musical em que se ensina como dançar o ritmo e lança o movimento cultural nordestino tão importante como seria décadas depois a bossa nova dos cariocas e a tropicália dos baianos. Sim, porque foi tudo muito bem arquitetado pelos dois - Gonzaga e Teixeira –, para ocorrer o que Sivuca, anos mais tarde, chamaria de “operação inversa”, ao trazer a música, os ritmos e os costumes nordestinos para o Sul, via indústria radiofônica e fonográfica, casadas para ditar a moda para todo o Brasil, como hoje faz a TV.

Os dois parceiros trouxeram com poética consistente os valores culturais e espirituais escondidos por décadas de omissão da cultura oficial sulista, como fez a política do Estado Novo com a também genial Carmem Miranda, com sua baiana estilizada para dar boas-vindas à política da boa-vizinhança com os Estados Unidos.

Seria então inaceitável a personagem emblemática que Gonzaga criaria nos anos 1940, juntando a figura do cangaceiro e do vaqueiro para representar este Brasil nada folclórico e caricatural, que os americanos adoraram na figura ousada, sensual e talentosa de Carmem Miranda. Gonzaga trazia a poética do “cabra macho” como imagem, mas que cantava docemente e sensivelmente suas dores de amores, carências e saudades de um sertão que fora abandonado por eles por questões de sobrevivência.

Cariri Gonzaga procura parceiros nordestinos do sertão brabo para dar sentido a tudo que viveu na infância e em parte da juventude em Exu, a cidade pernambucana vizinha ao maior celeiro cultural no Nordeste, que é a região do Vale do Cariri, com três cidades referenciais para sua família: Juazeiro do Norte, de padre Cícero; Crato e Barbalha, com tradição forte de artistas e artesãos, poetas da melhor qualidade como Cego Aderaldo e Patativa do Assaré, nascido não muito longe dali.

Gonzaga com dois poetas das brenhas, Teixeira e Dantas, definiria todo o conceito estético e poético de sua música e desse movimento cultural nordestino que queria instalar na cena urbana sulista, e urbanizá-la não só para conferir modernidade ao projeto, mas também para dar outra dimensão cultural ao Nordeste. São estes dois parceiros, cheirando a bode e a chão de barro batido, que lhe dão temas e versos viscerais e definitivos para que seu reinado lhe desse fôlego de décadas e vencesse o fatalismo da morte prematura. As comemorações dos 100 anos de nascimento de Gonzagão revelam o que nenhum artista brasileiro até agora teve de reconhecimento e homenagens, além de tantas recriações de sua vasta obra.

Isto se compreende melhor quando sabemos que Gonzaga influenciou e inspirou gerações de artistas dos mais importantes na música popular brasileira surgidos desde os anos 1950, de Jackson do Pandeiro a Siba, passando por Gilberto Gil, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, Hermeto Pascoal, Alceu Valença, Fagner, Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Chico César e Lirinha, todos tributários de um rio sem fim de canções e gestos que vão além de tantos ritmos e tantas poesias.

Luiz Gonzaga, enfim, é porta-voz de uma conjunção feliz de poetas que recriaram o Nordeste, revelando uma literatura musicada ímpar no país e talvez no mundo, que cantou e canta uma região nos seus detalhes mais íntimos, com suas formas estéticas mais criativas e suas aspirações e sonhos mais profundos.

Por isso, reina absoluto e sempre nas noites mais belas de são-joão, em que anima festas na terra e no céu, onde esplendem fogos e estrelas sem começo nem fim.

Bené Fonteles é artista plástico, poeta e compositor.

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