Trote da Faculdade de Direito da UFMG é simbolo de autoritarismo que marca uma sociedade pretensamente democrática

Atitude de alunos repercute valores de exclusão social, discriminação, violência e certa arrogância de impunidade

por João Paulo 23/03/2013 00:13
Juarez Rodrigues/EM/D.A Press
(foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)
Um dos fatos marcantes desta semana foi a divulgação de fotografias de calouros da Faculdade de Direito da UFMG em situação de constrangimento, com atitudes de racismo, fascismo e sexismo comandadas por alguns sorridentes alunos veteranos. Tratava-se do trote, uma instituição tão antiga como odiosa, que tem como “justificativa” o cumprimento de provas iniciáticas para que se configure o pertencimento dos novos postulantes a um lugar social de destaque. Com as mesmas explicações, atitudes semelhantes são observadas em outros contextos e sociedades. O que mostra que podemos ser ruins em matéria de humanismo em todos os lugares do mundo.

O que seria a repetição de um ritual ultrapassado e violento, cobrando ações de vigilância mais estritas e punições mais exemplares, no entanto parece simbolizar uma forma de autoritarismo que teima em deixar marcas numa sociedade pretensamente democrática e republicana. O que se viu guardado pelos muros da universidade foi uma atitude que repercute valores de exclusão social, discriminação, violência e certa arrogância de impunidade, dado o jeito orgulhoso com que os torturadores morais posam para fotos.

Curiosamente, a imprensa de todo o país, mesmo condenando o ato, foi bastante condescendente com seus agentes, que, em atitude criminosa explícita (pelo menos racismo e cárcere privado – um estudante foi atado a um poste e outra acorrentada), tiveram seus rostos desfocados nas fotos, empenho que não se observa quando se trata de pessoas de outro meio social. Além disso, num exercício de negaceio, os crimes eram apresentados mais como decorrentes do sucesso do vazamento das imagens nas redes sociais do que por seu potencial de violência explícita.

Essa ambiguidade talvez retrate alguns aspectos que caracterizam o autoritarismo brasileiro, que tem nítidos elementos de classe. Não somos mais autoritários que os outros, mas possuímos elementos de distinção que vêm se fortalecendo historicamente. O fato de o trote ter sido flagrado numa universidade pública (de acesso mais difícil) e num curso de direito (território da legitimação social) torna ainda mais significativo o viés classista, em sua utilização de signos como a escravidão e a saudação nazista, típica da nova direita, que recusa a convivência social com outras etnias e com migrantes.

O que caracterizaria o autoritarismo brasileiro, do qual a atitude dos alunos, em sua irresponsabilidade, seria um exemplo selvagem, sem mediação aparente da cultura e das normas internalizadas? Quem melhor dissecou a face tipicamente brasileira do nosso autoritarismo foi a pensadora Marilena Chauí, em textos que servem ao mesmo tempo como instrumento de análise, reflexão e chamamento ético à ação transformadora da sociedade.

Desigualdade Em primeiro lugar, o autoritarismo no Brasil parte da recusa da aceitação da igualdade. O mais básico dos princípios liberais, no país, se torna quase uma postulação política. A igualdade formal no Brasil é sempre coadjuvante da desigualdade das relações sociais. O que era para ser diferença é tomado, na prática social, como inferioridade. É o que explica a homofobia, o racismo e o machismo, observados todos os dias, e, num extremo de anomia, a capacidade de guindar um deputado confessadamente racista e homofóbico ao posto de presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados (o grave é que, no terreno da formalidade, tudo parece ser um desvio pessoal, quando se trata de um arranjo político que envolve todo o sistema representativo e a integralidade do processo de elaboração do ordenamento jurídico nacional).

O segundo aspecto do autoritarismo pátrio é a tradução do princípio anterior (a recusa da igualdade) numa impossibilidade prática de atitudes críticas e de contestação. Em outras palavras, marcados de nascença pela desigualdade estrutural, a sociedade traduz esse prejuízo em leis e atitudes (repressão) que tendem a naturalizar o que é uma violência social. As normas existem para preservar privilégios, a repressão tem a função de silenciar as camadas populares, o aparelho jurídico é estruturado para garantir vantagens históricas, e não para instituir novos direitos.

Vem daí, por exemplo, a noção de democracia praticada no país, que fortalece o polo do consenso e criminaliza o do conflito. Democracia deveria supor os dois lados, o acordo e o debate. Assim, o exercício dos protestos, a agitação social contra as injustiças, as ações de ocupação de terras improdutivas e áreas urbanas com déficit de moradia são sinal de vitalidade democrática. No entanto, a resposta, em nome da democracia fundada nos acordos de interesses particulares, traduzida em consensos que deveriam ser reformados, é sempre o cumprimento estrito das atitudes de repressão contra aquelas ações.

O terceiro elemento do autoritarismo no Brasil, também identificado no caso do trote, é a indistinção entre as esferas pública e privada. Não parece haver no país uma percepção do público como espaço coletivo, mas apenas como terreno de exercício dos apetites privados de setores privilegiados. Do mesmo modo que o público é privatizado, o privado perde sua dimensão de intimidade quando serve aos interesses econômicos e políticos. Nosso autoritarismo é mestre em se apropriar do que é de todos e em invalidar a manifestação da individualidade dos cidadãos comuns.

Por fim, na lista de defeitos de origem do autoritarismo tipicamente nacional estão a naturalização das desigualdades, operadas a partir do consenso vicário oferecido pelos meios de comunicação, e o fascínio pelos sinas de riqueza, poder e prestígio. Para adentrar no território dos doutores (é impressionante como os advogados gostam tanto do título que se chamam entre si de doutores o tempo todo, até mesmo nas relações menos formais) é preciso merecer. O merecimento, no caso brasileiro, é dado pela submissão a todos os preceitos acima e até mesmo a provas bem menos nobres, como trotes e outras ações de constrangimento ilegal, entre elas o puxa-saquismo explícito, pragas das mais reincidentes.

Somos autoritários ao nosso modo. E, também com singular disposição, validamos a injustiça que daí decorre em vários momentos de nossa vida. Estudantes que se submetem ao vexame dos trotes apenas reproduzem, onde seria de esperar que estivessem livres em razão de sua posição social, atitudes consideradas justificadas na vida do trabalhador comum. São situações diárias, como a revista no local de trabalho, a ameaça à participação sindical ou política, a cobrança de comportamento evasivo em matéria de sexualidade, a exigência de silêncio frente aos inúmeros assédios morais, entre outros. Trotes invisíveis que humilham no dia a dia. Isso para ficar apenas no campo do trabalho.

A saída para o autoritarismo é um misto de denúncia tenaz e corajosa e de postulação de novos contextos de sociabilidade. Em outras palavras, de criação de um campo social de lutas que vá além do jogo viciado de um Estado sacralizado, de uma sociedade satisfeita em sua desigualdade, de uma política reduzida ao marketing narcisista e de uma democracia de meros procedimentos.

A academia, que agora está no centro da roda com o trote dos acadêmicos de direito, tem obrigação não apenas de resolver essa questão de forma exemplar, como também de iluminar com conhecimento uma sociedade que permite tais abusos. Esse retrato não pode ser desfocado: é preciso que a universidade mostre sua cara.

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