Romance de Valter Hugo Mãe narra a história de mulheres presas à severa rotina do trabalho doméstico

por André Di Bernardi Batista Mendes 23/03/2013 00:13
Beto Magalhães/EM/D.A Press
Beto Magalhães/EM/D.A Press (foto: Beto Magalhães/EM/D.A Press)
O português Valter Hugo Mãe, de 41 anos, foi o grande vencedor do Prêmio Portugal Telecom de Literatura, anunciado recentemente. O livro A máquina de fazer espanhóis recebeu duas premiações: a de melhor romance e o Grande Prêmio Portugal Telecom 2012. O romance narra a história de um barbeiro de 84 anos que, depois de perder a mulher, passa a viver num asilo e revê sua trajetória. Acaba de chegar às livrarias O apocalipse dos trabalhadores, terceiro romance do escritor publicado pela Editora Cosac Naify.

O livro conta a história de Maria da Graça e Quitéria, duas empregadas domésticas (ou “mulheres-a-dia”, como são chamadas em Portugal) que, apesar do trabalho duro e da rotina opressiva, mantêm as esperanças em uma vida melhor. O livro narra suas desventuras amorosas: Maria da Graça envolve-se com seu patrão, que considera o homem ideal; Quitéria, por sua vez, vive um romance com um jovem imigrante ucraniano. Para incrementar o orçamento mensal, as duas fazem bicos como carpideiras, e passam madrugadas velando defuntos desconhecidos. O enredo não passa disso, é simples, como dois mais dois.

O problema é que Valter Hugo Mãe tem uma visão muito peculiar sobre os fatos. Conceitos de fé e religião ganham outra dimensão diante de uma literatura, no mímino, aplicada para o que existe de mais profundo. O melhor de Valter Hugo Mãe é que ele deixa que algumas sombras, sorrateiras, entrem pelas páginas de todos os seus livros. Boa parte de sua prosa chega, desce com uma carga inexorável de poesia, a mais alta poesia que pode haver. Não sei se há trabalho e retrabalho nessa conduta, nessa construção imensa feita dos sonhos das palavras. Mais importa o resultado. Valter Hugo é um grande inventor de neblinas, onde mora o mistério. Valter, quando escreve, carrega o novo em suas mãos.

O escritor português mexe em grandes vespeiros. A sua flecha vai de encontro a Deus, não sem antes atravessar o espírito dos homens. O que passa pelos olhos das carpideiras aparentemente alheias em seu trabalho de lágrimas? Engana-se aquele que rapidamente, aquele que ingenuamente adivinha que é a morte que norteia os acontecimentos. A finitude pode ser ponto de partida.

Valter Hugo nos convoca para jogar. Existe uma teia feita de nós e amarras. O escritor forja um elo entre personagens e leitores. Os pobres personagens de O apocalipse dos trabalhadores estão, viventes, apenas atravessando. Valter Hugo é um escritor de palavras garridas. Só assim ele nos convence de que somos feitos da mesma essência da luz. E esse tipo de literatura exige uma conversão imediata. O verbo, o livro é um espaço propício para transposições. É bom reencontrar. É ótimo agarrar num abraço tudo isso que sempre foi nosso (essa espécie de esmola dos deuses). A vida é feita de incidências.

“Deus: uma superfície de gelo ancorada no riso.” Valter Hugo concorda, em partes, com ressalvas, com a poeta Hilda Hilst. Os personagens deste belo livro são miseráveis de tudo, mas existe – ainda – esperança quando há amor e comunhão, quando tudo discorda e tem voz, mesmo que seja um grito, um gemido de dor diante de um deserto renitente. Algumas crianças continuam vivas, algumas crianças vingam perto dos livros de capa colorida. Não se sabe como, mas Valter Hugo é dono de argumentos.

Contudo, o apocalipse. Porque inventaram um sistema, uma engrenagem de erros; porque ainda não estamos preparados para aquelas crianças de cima; porque ainda não há nenhuma justiça; porque pesa no ar algo de precário, mesmo nos momentos de folga e descanso.

Pequenas mortes
Os personagem de O apocalipse dos trabalhadores vivem desse jeito, prestes a cair, num constante balé feito de desequilíbrios. Estes seres, de certa forma, recusam-se a aceitar o seu destino de máquinas. O paraíso, a salvação de cada um é forjada nas pequenos mortes do dia a dia. O apocalipse de cada um paira, impávido, entre paradoxos. De um lado, a brutalidade, a ignorância, o veneno posto do prato do marido, o trabalho braçal. Do outro, a esperança, e a humilde transparência de almas e corações cheios de incompletude.

É preciso, de alguma forma, de qualquer jeito, corroer as estruturas da sociedade (a utopia, em toda hora), para que a mesma desmorone. É preciso muito mais que armas e táticas de guerrilha. Maria da Graça é assim: “para sobreviver à violência da situação, concentrava-se no dinheiro que ganhava e julgava a vida como difícil e para ela o difícil era suportável até um ponto de exagero assinalável.” E é perigoso, e é muito triste não ter vocabulário suficiente para explicar.

Valter Hugo nada mais faz que ampliar a voz de Maria da Graça e Quitéria. Ele busca, com todo amor, captar, fixar, mesmo que provisoriamente, enquanto durar o livro, a imagem destas mulheres que, aos poucos, vai se apagando, até o sem sentido da invisibilidade. A única palavra, a maior delas, é uma, e única: esperança.

Os personagens de O apocalipse dos trabalhadores vivem abafados, numa “vida periclitante, intermitente entre a esquerda ou a direita, para sempre ou esgotada num segundo, doce ou amarga, com amor e profundo ódio.” O coração dos personagens batem anômalos, numa distopia estranha. Todos são indigentes, carentes de algo maior, que, no entanto, passa despercebido. Cada um a seu modo, apenas intui um pequeno código que os conecte a este algo suspenso, ainda longe em termos de conquista. Existe uma rotina de sombras, de sustos. Os descuidados governam o destino dos atentos. O apocalipse pode também ser isso, algo feito de pequenos dissabores.

O APOCALIPSE DOS TRABALHADORES
• De Valter Hugo Mãe
• Editora Cosac Naify
• 192 páginas, R$ 39,90

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