'O professor do desejo', clássico de Philip Roth, ganha nova edição brasileira

Revisitar a saga de David Kepesh é uma forma de driblar a aposentadoria do genial romancista

por Bernardo Scartezini 16/03/2013 00:13
Eric Thayer/Reuters
Eric Thayer/Reuters (foto: Eric Thayer/Reuters)
Philip Roth é um sujeito discreto. Dia desses, outubro passado, numa entrevista para a revista pop francesa 'Les Inrockuptibles', ele comentou que estava se aposentando. Não fez maiores alardes. Já tinha escrito o suficiente, disse, melhor parar por aqui.

“Fiz o melhor com o que tinha em mãos”, sentenciou, tomando de volta para si as palavras que colocou na letra de Bucky Cantor, narrador e protagonista daquele que – pelo jeito – será o último livro de Philip Roth, 'Nêmesis' (2010).

A ficha só começou a cair quando uma publicação vetusta, o jornal 'Le Monde', foi atrás do camarada para confirmar a notícia. E era isso mesmo. Philip Roth, que completará 80 anos na terça-feira, está decidido a parar de escrever. Tão prolífico ao longo das últimas duas décadas, ele hoje conta não ter escrito mais nada desde 'Nêmesis'. Nem acha provável que volte a escrever.

O leitor brasileiro, no entanto, antes de se ver órfão deste que é considerado um dos maiores romancistas contemporâneos, pode aproveitar que a obra de Philip Roth está quase integralmente publicada e disponível no mercado nacional. É hora de ler, reler Philip Roth. Mais do que nunca.

Pode-se começar por este 'O professor do desejo'. Publicado originalmente em 1977, sua última edição brasileira saiu em 1987, pelo Círculo do Livro, em tradução de Mendonça Taylor. A Companhia das Letras o recoloca no mercado, sob tradução do experiente Jorio Dauster (que já se exercitara por Nabokov e Salinger).

'O professor do desejo' traz David Kepesh, um personagem recorrente para Roth. Ele nos tinha sido apresentado primeiro em O seio (1972), atualmente fora de catálogo no Brasil, e anos mais tarde voltaríamos a Kepesh para 'O animal agonizante' (2001), facilmente encontrado em edição da Companhia.

David Kepesh foi criado no hotel de veraneio mantido por seus pais e frequentado basicamente por judeus de origem húngara, como o são os próprios Kepeshs. Dali, seguiremos o rapaz quando ele for para Nova York estudar na universidade e de lá passar uma temporada em Londres para aprimorar seus pendores acadêmicos.

Mas o interesse primordial do jovem David Kepesh estava em fazer sexo. Ele ganha uma baita oportunidade para afinar seu repertório quando vai morar na companhia de duas garotas suecas que estavam por Londres se virando em pequenos empregos. Elas não trabalhavam direito, Kepesh não estudava nem a pau.

O interlúdio a três, porém, será abreviado por um incidente que convém não contar por aqui. Kepesh voltará aos puritanos Estados Unidos e se tornará professor de literatura. O ambiente acadêmico também tem suas tensões sexuais, mas o bravo Kepesh apostará nas benesses da monogamia – e se unirá a uma colega professora...

Nesse momento, 'O professor do desejo' corre o risco de se transformar num “romance de formação”, de se transformar num desses livros que acompanham os tropicões de um personagem no árduo caminho da maturidade, coisa e tal.

Philip Roth não cai nessa, não. Ele não deixará Kepesh vencer seus “demônios”, para usar um termo empregado pelo próprio professor. Em última instância, isso seria o mesmo que matá-lo. São esses demônios que o fazem ser digno de nosso interesse. E eles podem armar diversas armadilhas para o afeto e a libido. Como, por exemplo, o lodoso tédio matrimonial quando se abre num inferno cotidiano – do qual o nosso herói ali adiante provará.

Ao fim do livro, anos depois do início de sua narrativa, deixamos Kepesh tão confuso e atordoado quanto em sua juventude. Um pouco mais apaziguado, talvez, mas nem um pouco bem resolvido. Afinal, este é aquele camarada que uma certa manhã, ao acordar de sonhos intranquilos, se verá repentinamente metamorfoseado em um peito gigante – na kafkiana novela O seio.

Kafka e Tchekhov As relações de 'O professor do desejo' com 'O seio' e 'Animal agonizante' são naturais e passam pelo talento do autor em revisitar um personagem de tempos em tempos, a cada vez atribuindo a ele novos interesses e novos aspectos pessoais. Roth também faz isso com excelência quando reencontra o personagem Nathan Zuckerman, criado no fim dos anos 1970 e retomado periodicamente ao longo das décadas seguintes.

A obra de Philip Roth, agora fechada e arredondada por sua aposentadoria, é muito rica em tais aproximações e semelhanças. 'O professor do desejo' assim se relaciona, tanto em forma quanto em conteúdo, com 'O complexo de Portnoy' (1969). Por uma dessas adoráveis coincidências do mercado editorial, a Companhia das Letras agora está a relançar também esse livro, na consagrada versão de Paulo Henriques Britto.

Alexander Portnoy é um masturbador compulsivo que procura ajuda psiquiátrica para se livrar de sua compulsão. Mas acaba por transtornar ainda mais a si mesmo – e a seu terapeuta, bem podemos imaginar. O livro é um longo monólogo, como uma sessão de Portnoy deitada por escrito. O monólogo é realmente o discurso perfeito para um masturbador.

David Kepesh é um sujeito mais culto que Portnoy. Professor de literatura, ele tenta buscar em seus escritores preferidos a chave do erotismo que o fascina às raias de comprometer sua vida pessoal. E tenta, ao mesmo tempo, encontrar neles alguma espécie de álibi lírico para si.

Atravessada por esse filtro erótico chamado Kepesh, portanto, temos uma leitura de Philip Roth sobre a sexualidade representada em Tchekhov, Tolstoi, Flaubert, Mann e (claro) nosso amigo Franz Kafka. Se uma das virtudes de um grande autor é saber abrir diálogos com outros autores, aqui neste livro Roth exercita esse talento com sutileza e engenho.

A lembrança de um antigo conto de Tchekhov ilumina a enésima desilusão amorosa de Kepesh e encaminha magistralmente seu desfecho. A felicidade, parecem sugerir tanto Kepesh quanto Roth, existe sim, existe de fato. Ainda que seja breve. Ainda que dure uma tarde apenas. Como em um conto de Anton Tchekhov.

TRECHO

“Quando chegamos aos 30 anos, nossas antipatias haviam se exacerbado tanto que cada um de nós se reduziria precisamente àquilo que o outro tanto suspeitara de início, o ‘cabotinismo’ e a ‘afetação’ professorais que Helen detesta em mim com todas as forças – ‘Você realmente conseguiu, David, virou um chato de galocha’ –, não menos patente que sua ‘absoluta negligência’, seu ‘esbanjamento idiota’, suas ‘fantasias de adolescente’ e outras coisas do gênero. No entanto, não consigo deixá-la, nem ela a mim, não até que o desastre total torne simplesmente ridícula a espera de uma conversão milagrosa do outro. Para a nossa surpresa e de todos os demais, continuamos casados por quase tanto tempo quanto fomos amantes, talvez porque o casamento agora permite que cada qual ataque de frente o que julga ser seu próprio demônio (e que no começo parecia ser a salvação do outro!). Passam-se os meses e permanecemos juntos, nos perguntando se uma criança poderia resolver aquele louco impasse... ou uma loja de antiguidades para Helen... ou uma joalheria... ou psicoterapia para ambos. Muitas vezes nos ouvimos sendo descritos como um casal extraordinariamente ‘atraente’: bem-vestidos, viajados, inteligentes, cosmopolitas (sobretudo em comparação com outros casais de professores universitários), uma renda conjunta de US$ 12 mil por ano... e a vida é simplesmente um inferno.”

O PROFESSOR DO DESEJO

• De Philip Roth
• Companhia das Letras
• 256 páginas, R$ 39,50

O COMPLEXO DE PORTNOY
• De Philip Roth
• Companhia das Letras
• 264 páginas, R$ 52,50

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