'O anel' celebra a parceria de Alaíde Costa com Zé Miguel Wisnik

Disco resgata a canção do paulista que a cantora defendeu em festival nos anos 1960. 'Chorei feito uma doida', diz ela, sobre a gravação

Estadão Conteúdo 27/12/2020 04:00
Kazuo Kajihara/ Sesc SP
José Miguel Wisnik e Alaíde Costa celebram a parceria que vem desde os anos 1960 (foto: Kazuo Kajihara/ Sesc SP)

 
Para falar do álbum O anel – Alaíde Costa canta José Miguel Wisnik (Selo Sesc) é preciso voltar a 1968, ano de endurecimento da ditadura militar do Brasil. Mas também de efervescência musical, sobretudo nos festivais, que abriam espaço para que jovens compositores, muitos deles universitários, pudessem ter alguma voz.
 
Entusiasmado com essa abertura, o paulista José Miguel Wisnik, então com 19 anos, que estudava letras e piano clássico, foi atraído para inscrever Outra viagem, de sua autoria, no 1º Festival Universitário da Canção Popular, iniciativa da TV Tupi. Teve de escolher o intérprete na lista que a produção do evento lhe entregou. Sem muita demora, apontou uma carioca radicada em São Paulo, cujo nome era associado à bossa nova. Era Alaíde Costa.
 
“Identifiquei-me logo. Achei que ela tinha a ver comigo e com a canção. Alaíde é do lirismo, das harmonias. Tempos antes, havia se apresentado no Theatro Municipal, convidada pelo maestro Diogo Pacheco, interpretando canções medievais e renascentistas (o show Alaíde com alaúde). Eu queria ser concertista, já havia me apresentado lá também. Havia todos esses cruzamentos entre nós”, conta Wisnik. Detalhe: naquela lista havia Elis Regina, Claudette Soares, Lucio Alves e Beth Carvalho.

INJUSTIÇA


Outra viagem alcançou o quinto lugar na final, o que desagrada a sua intérprete até hoje. “Achei muito injusto. A música é belíssima”, diz Alaíde. A canção nunca havia sido registrada em disco por ela até o lançamento de O anel.
 
O elo entre a cantora e o compositor, que resistiu a mais de cinco décadas, foi selado com um gesto quase maternal de Alaíde. Na comemoração após a final do festival, ela tirou do dedo o anel que usava e deu de presente para Wisnik. “Tinha uma luz estroboscópica e, nesse ambiente, ela fez esse gesto inesperado que me soou como o estabelecimento de um vínculo”, diz ele.
 
Essa história – e tudo o que ela significou – está na canção inédita que dá nome ao trabalho. “O anel que tu me destes, não guardei, nem me esqueci”, diz o verso. “Você não imagina a emoção que senti ao ouvi-la. A ficha caiu, né? Chorei feito uma doida”, conta Alaíde.
 
Outra faixa inédita do repertório, Aparecida, embora tenha sido composta na década de 1990, encaixou-se perfeitamente no clima do novo álbum ao falar da melodia que se acomodou em algum lugar do coração, com emoções guardadas sem posse. Entre as regravações, há Assum branco, Laser, de Wisnik e Ricardo Briem, e Ilusão real, parceria dele com Guinga.
 
O álbum tem produção de Alê Siqueira e direção do próprio Wisnik, que toca piano e participa como cantor de algumas faixas. A seu lado, estão Zeca Assumpção (contrabaixo) e Sérgio Reze (bateria), além dos convidados Jaques Morelenbaum (violoncelo), Swami Jr (violão) e Nailor Proveta (clarinete).

Escolhido o repertório, Alaíde pediu dois meses para estudar as canções. “Ela só canta o que corresponde à sensibilidade dela. Músicas que não batiam, ela não se deixou levar”, revela Wisnik. O apuro da cantora é famoso, ela se destaca por uma espécie de marca registrada: a emoção na voz.

“Não sei definir o que é (essa emoção). Analiso a poesia e tento passar o que o letrista quer dizer. Acho que é por aí. A coisa vem”, conta Alaíde.
 
“Não é uma emoção sentimental, cheia de trejeitos. Alaíde não sentimentaliza as canções. Ela não procura indicar o sentimento. A emoção vem inteira na emissão, ela só depurou ao longo dos anos”, explica Wisnik. E dá como exemplo o registro de Onde está você. “Alaíde já a canta há mais de meio século. Poderia estar automatizada, mas não”, observa o compositor.

CALOURA


Aos 85 anos de idade e 65 de carreira, Alaíde diz não se imaginar sem a música. Muito tímida, ainda na pré-adolescência era inscrita pelo irmão e vizinhas em programas de calouros. Ia “na marra”, conta. Aos 14, foi ser babá de três meninas. Cantarolava o dia inteiro pela casa, o que chamou a atenção da patroa, que sugeriu que ela fosse ao programa de calouros do temido Ary Barroso.
 
Sem dinheiro para comprar uma vitrola, decorou – de ouvir no rádio – Noturno em tempo de samba, de Custódio Mesquita e Evaldo Ruy, na voz de Silvio Caldas. Aprendeu, foi ao concurso de Ary e tirou cinco, a nota máxima. Tomou gosto pela profissão de cantora. Gravou Johnny Alf, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Baden Powell e João Donato.
 
“Minha carreira foi difícil. Modéstia a parte, tenho bom gosto. Sempre escolhi músicas que não são populares. Aliás, elas podem ser populares se as pessoas tiverem boa vontade para ouvi-las e divulgá-las. Mas estou feliz, não me arrependo de nada”, garante Alaíde Costa. (Estadão Conteúdo)
 
O ANEL

De Alaíde Costa e José Miguel Wisnik
10 faixas
Selo Sesc
Disponível nas plataformas digitais 

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