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Com os 'nervos' mais calmos e vocais menos 'gritados', Carne Doce lança seu terceiro álbum

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Quem acompanha de perto os lançamentos musicais (tanto os de viés mais comercial quanto os independentes) já está acostumado: sexta-feira é o dia reservado para acolher as novidades. Para os goianos da Carne Doce, no entanto, essa regra não se encaixa, pelo menos por ora. Tônus, seu terceiro disco de estúdio, chega às plataformas digitais nesta terça-feira (17) e marca o começo de uma nova fase para a banda liderada por Salma Jô, após o reconhecimento nacional que veio junto com o álbum anterior, de 2016 (Princesa).


Formado há cinco anos na fértil cena musical independente de Goiânia, o quinteto parece não se encaixar bem – ou ao menos não completamente – nas “caixinhas” preestabelecidas do mercado fonográfico. O primeiro álbum, homônimo ao grupo, veio ao mundo em 2014, marcado pelo amadorismo. Dois anos mais tarde, a banda teve seu boom nacional com Princesa, cujas temáticas delicadas se sobressaíam em relação aos acordes, em geral, psicodélicos. O elo entre os dois momentos é bastante claro e faz a ponte para a terceira jogada: a marcante voz de Salma como cantora e compositora.


“Gosto de escrever sobre coisas que doem e deixam a gente triste e envergonhada. Esses sentimentos negativos me inspiram”, conta ela. “Estamos falando dos mesmos assuntos: da vulnerabilidade humana, dos jogos de poder.
Só que, agora, num campo mais íntimo. Essas relações sempre me atraíram e continuo a escrever a partir delas”, comenta.
Apesar de assumir a primeira pessoa nas letras, a vocalista revela que nem todas as histórias descritas nas canções são pessoais. “Eu me apoiava bastante nisso no começo e, cada vez mais, estou conseguindo emprestar os meus sentimentos”, explica. “Comida amarga fala de desilusão amorosa, por exemplo. Claro que já passei por situações assim, mas nem tudo o que está ali é a tradução da minha experiência. É mais como dar voz à dor do que à consciência. É a voz do sentimento.”


Salma Jô é conhecida por seu jeito de cantar esbravejado e colérico.

Se antes os agudos davam o tom das principais canções, agora ela experimenta uma onda de calmaria, que casa com as letras “mais para dentro”, como as descreve. Tudo isso sem perder sua identidade ou afinação. “É uma busca minha por sofisticar a voz dentro do disco. No começo da Carne Doce, eu cantava mais gritado e isso tem a ver com uma certa ansiedade de banda principiante”, analisa.

NERVOS Em relação aos “meninos” – como ela carinhosamente se refere aos demais integrantes: Macloys Aquino (guitarra), João Victor Santana (guitarra e sintetizadores), Ricardo Machado (bateria) e Aderson Maia (baixo) –, Jô sente que eles estavam em plena sintonia. “Acalmamos os nervos e agora já sabemos onde pisar. Hoje, temos uma visão mais esclarecida do que queremos fazer e isso se reflete na forma como a gente cria as músicas e na maneira como os arranjos soam mais maduros”, explica.


Tônus é um disco acessível à sua maneira. Os temas das 10 faixas inéditas convocam a atenção do público para as entrelinhas, sobretudo no rock sereno de Besta e na intimista Nova nova, que flerta com o experimental e não se deixa levar por completo. Apesar disso, as narrativas não são herméticas e contam com o embalo envolvente dos arranjos bem construídos pelos músicos, improvisados no estúdio e incorporados por meio de samples na pós-produção.


Ainda que tenha nascido como dupla, e Salma seja a única figura feminina entre os cinco integrantes, a Carne Doce ganhou o título de “banda feminista” por conta do sucesso das canções Artemísia e Falo, que abordam questões da agenda do movimento, como o aborto e a voz das mulheres em ambientes majoritariamente masculinos.


“Ainda estou analisando como minhas escolhas foram interpretadas e até que ponto tenho responsabilidade em relação a isso”, diz Salma.

“Acabei usando a mesma linguagem que a militância usa, de falar de forma direta. Minha intenção era explorar a dualidade humana, mas a forma como discuti foi lida como hino.” Como compositora, ela avalia: “Vejo um pouco de histeria naquelas personagens. Elas não são completas ou perfeitas. Sinto que as pessoas não enxergam essa complexidade. Gosto de dificultar, explorar as nuances.”


Para o novo disco, ela se privou das canções meramente “panfletárias”, mas, ainda assim, explorou diferentes faces dos temas. Não à toa, o disco traz canções como as sensuais Amor distrai (Durin) e Brincadeira – ambas em parceria com Fernando Almeida Filho, o “Dinho”, vocalista dos Boogarins – e as baladas introspectivas Já passou e Ossos. “Quase todos os pais vão direto pro inferno/ E muito poucas mães não são santas normais”, canta Salma, sob um dedilhado delicado de guitarra, enquanto o restante dos instrumentos é discretamente introduzido.


Sonoramente, a grande novidade está na música-título, Tônus, que traz uma levada ao sabor do rock alternativo dos anos 1980, com atmosferas e texturas inexploradas pela banda até então, o que casa perfeitamente com os vocais reverberados. A carga emocional está concentrada em Irmãs, música que fez Salma chorar no estúdio e soa como a Carne Doce lá de 2014 com boas frases como: “Dance com seus medos/ Tarde ou cedo seu jeito de ser mais feliz/ Vai pedir bis/ Vai te acertar/ Como uma tarde bonita”.


O “anticlímax”, nas palavras de Salma Jô, está na última faixa, Golpista. “As pessoas vão ouvi-la pensando: ‘Nossa, agora está aqui a explicação completa do porquê foi um golpe’. E, não, não é sobre isso”, adianta.

“Ela fala mais sobre esse clima que ficou cada vez mais polarizado, em especial na própria esquerda. A gente não consegue se ver representada em qualquer composição que seja. Então, a música é sobre isso: esse vazio, essa falta de valor comum”, afirma.


Durante o processo, Macloys idealizou e produziu um terno diário da gravação, publicado na internet, num raro movimento de trazer o público para dentro do estúdio. De forma talvez não totalmente consciente, a banda tenta restituir essa falta de unidade que lhe incomoda ao criar uma linha direta com os fãs. O resultado desses meses de espera assistida é um disco consistente e complexo, tal como Salma o idealiza. Um terceiro trabalho que confirma a importância da Carne Doce para a cena autoral brasileira.

 

Abaixo, confira o single Nova nova:

 

 

TRECHO DO DIÁRIO DE GRAVAÇÃO


Todos choram com Salma,
por Macloys Aquino

Quinta-feira, 12 de abril de 2018

Eu sempre tento medir a fortuna em ser companheiro da Salma, nunca consigo. De onde saiu tanta sorte, meu Deus? “É divino mesmo que Deus não tenha nada a ver com isso”, ela já havia dito na primeira canção que fizemos juntos, Dos namorados, em 2012.

 

Ontem, quinta-feira, ela gravou Já passou. Tão ou mais bonita que Eu te odeio, ela diz em sussurro “vem comigo, me diz onde dói, que eu tô doendo também, porque eu choro se você chorar”. Essa tem um conforto materno, o colo pra onde correr quando se está com medo.

 

É a única do disco com violão. Gravei com iPhone, em casa, captando passarinhos e ruídos, e assim será usada.

É tão sentimental. Mas a emoção extraordinária desse disco está em outra, que por enquanto se chama Irmãs.

 

Havíamos acabado de voltar da pausa do lanche ontem à noite e Jô pediu: Irmãs. Eu sabia que seria duro aquele momento, mas fui tão surpreendido quanto os meninos, que não conheciam a letra, porque ela escancara uma dor antiga, contida, não compartilhada.


No primeiro take, Salma começa sofrer, sua voz se molha em lágrimas e as últimas frases saem grunhidas. Ela pede desculpas. Na técnica, Braz, Zamboni, Aderson, João e eu também gotejamos tristezas. Acendemos as luzes e respiramos, em silêncio. “Porque eu choro se você chorar”, disse Já passou, gravada instantes antes.

Mais trechos do diário estão disponíveis em 
medium.com/@carnedoce

 

TÔNUS
>> De Carne Doce
>> Natura Musical
>> R$ 15
>>  Disponível nas plataformas de streaming e no YouTube

 

*Estagiário sob supervisão da editora Silvana Arantes

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