Crise da Gibson não é sinônimo de decadência da guitarra, dizem professores de música e comerciantes

Convidados pelo EM, eles contrariam o discurso de que a falência da lendária fábrica está associada à mais uma das sentenças de morte dadas ao rock

por Pedro Galvão 27/02/2018 08:28
AFP
Uma guitarra Les Paul, ícone da Gibson, custa R$ 6 mil na Serenata. (foto: AFP)

Na semana passada, a notícia de que a lendária fábrica de guitarras Gibson está perto da falência soou como um acorde errado aos ouvidos dos amantes do rock, blues, jazz e R&B. Com uma dívida de cerca de US$ 375 milhões, o futuro da empresa, que se tornou referência histórica – especialmente pelo modelo Les Paul –, está em risco. A lista de astros adeptos da Gibson vai de Jimmy Page, Eric Clapton, Carlos Santana, Keith Richards e Slash a Elvis Presley, John Lennon e B. B. King. Alinhados ao mau momento da gigante internacional, os números brasileiros também assustam. A Associação Nacional da Indústria da Música (Anafima) informou que, de 2012 a 2017, a importação de guitarras e contrabaixos caiu 78%. Seria a decadência desse ícone cultural do século 20?

A informação repercutiu com pessimismo nas redes sociais. Para uns, significa outra das várias sentenças de morte dadas ao rock, ainda que a guitarra não seja exclusividade do estilo. Para outros, é a prova de que as novas gerações não se interessam por práticas de aprendizado que demandem tempo e dedicação, o que traria a derrocada de estruturas musicais tradicionais. No entanto, envolvidos diretamente nesse universo avaliam o problema de forma menos catastrófica.

Fundador da Pró-Music, atual Escola de Música Popular, Márcio Durães reconhece o desinteresse da juventude pela guitarra, mas não se assusta. “Todos os instrumentos estão perdendo espaço para outras práticas. É muito mais fácil jogar game do que tocar guitarra. O jovem é bombardeado pelo boom de tecnologia. Antes, a gente até tinha o Guitar Hero no game, hoje ‘hero’ é o YouTube, ter um vlog. Ou seja, as pessoas preferem investir tempo em outras coisas. Aprender um instrumento demanda dedicação”, argumenta Durães, que há 24 anos ensina música em BH.

Porém, ele admite: algumas práticas musicais ganharam espaço enquanto a guitarra perdeu força. “Nosso curso de técnica vocal e canto livre cresceu. Cantar permite ser a estrela, por isso sempre haverá alguém cantando, independentemente do estilo. Muita gente quer cantar sertanejo. Além disso, o curso de DJ, que não existia antigamente, tem forte apelo, assim como o de áudio e produção musical”, detalha. A escola oferece 23 cursos regulares.

MODISMO
A reconfiguração de interesses mudou positivamente o perfil dos alunos, acredita Durães. “O foco é muito maior, não há mais aquele modismo de décadas passadas. Houve queda no número geral de alunos, mas também aumento da fidelidade. Não tem mais aquele fogo de palha de entrar, fazer poucas aulas e sair. Hoje, temos menos alunos mas eles são mais dedicados.” A crise da Gibson não o surpreendeu. “Atualmente, é possível comprar muita guitarra barata, com qualidade OK, que, às vezes, nem nome tem. Com a crise econômica, fica mais difícil adquirir e manter um instrumento e seus equipamentos. Muita gente ficou sem condições. É simplificar muito achar que tudo se resume à perda de interesse pela guitarra”, pondera.

Inácio Cavallieri, diretor da escola de música belo-horizontina que leva seu sobrenome, não acredita que a guitarra entrou em decadência. “Pessoas e pequenas fábricas aprenderam a construir instrumentos de qualidade. É por isso que produtoras tradicionais já não detêm o monopólio de venda”, argumenta. O curso de guitarra continua muito procurado na Cavallieri, fundada há 20 anos. Ele discorda da tese de que as novas gerações sejam desinteressadas pelo aprendizado.

“Na verdade, o mundo está cada vez mais diversificado. Há 30 anos, a juventude tinha poucas oportunidades de diversão e especialização – era algo meio jogar bola ou tocar guitarra, num pensamento raso. Hoje, o jovem pode ser blogueiro, youtuber, gamer, skatista, um bilhão de coisas, inclusive músico. Há excelentes guitarristas jovens, basta procurar”, defende Cavallieri.

CULTO O alarde sobre a decadência da guitarra é analisado com cautela por comerciantes de instrumentos musicais, que ressaltam a gama de possibilidades que o instrumento oferece, além do rock, blues e jazz. “Hoje, até missa e culto têm guitarra. É um público novo, que não existia antes”, afirma Júnio Simões, gerente de vendas da Serenata, uma das principais lojas do setor da Grande BH.

Simões destaca o comportamento diferente do público em comparação às décadas de 1980 e 1990, quando a guitarra estava no auge. Informa que a Serenata registrou crescimento em 2017. “Houve queda na importação, mas isso não está alinhado ao consumo. Não importar não quer dizer que não vendeu. Depois de um período com importação muito alta, a queda é natural”, pondera.

O gerente da Serenata informa que a procura pelo produto é expressiva, apesar do cenário de crise e desemprego. Mesmo o público mais jovem busca o instrumento, sob influência de seus ídolos e das referências do passado. No entanto, ele chama a atenção para a força do mercado ligado à música eletrônica. “O advento do digital permitiu a evolução de muitos processos de gravação e produção. Agora, com investimento razoável é possível ter um estúdio caseiro muito bom”, lembra.

Proprietário da Guitar Shop, loja aberta em 1991, José Mauro Ulhôa minimiza a crise da Gibson e a redução de importações. “São duas coisas diferentes. Primeiro, a crise da Gibson é a crise dela. É uma marca muito tradicional, muito querida, mas é difícil de vender: cara, sempre foi um produto de elite e de venda difícil, especialmente aqui. Em relação à importação, quando começou a crise econômica no Brasil, em 2014, o dólar estava quase 50% mais baixo, então houve uma redução drástica (de compras no exterior), até porque várias importadoras estavam com estoques cheios”, analisa.

Uma guitarra Les Paul, ícone da Gibson, custa R$ 6 mil na Serenata. Modelos produzidos por outras fábricas são encontrados por valores a partir de R$ 850.

PICO Daniel Neves
, presidente da Anafima, concorda. “Houve um pico de importação justamente para aproveitar o momento em que a moeda americana estava em baixa. Então, essa queda não necessariamente se reflete de maneira igual na venda final dos lojistas”, explica.

Ulhôa garante: “Guitarra depende da moda”. Para ele, instrumentos musicais passam por ciclos. “Ela está menos procurada agora, mas isso é sazonal. O violão mantém uma venda boa, mesmo com a crise. Além de musicalmente mais versátil, é um investimento menor”, compara, lembrando que, no caso da guitarra, a variedade é bem maior do que há 30 anos, quando Gibson e Fender reinavam absolutas.

“Hoje, temos guitarras excelentes com preços acessíveis, seja de fabricação artesanal ou mesmo de marcas asiáticas. A Gibson optou por manter os padrões de fabricação lá nos Estados Unidos e por isso continuou com um custo muito elevado”, compara o dono da Guitar Shop, que dispõe de 10 marcas do instrumento em seu estoque, com exceção da Gibson. (Com Alexandre de Paula e AFP)

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