Compositor André Mehmari e violoncelista Antonio Meneses lançam AM60AM40

Parceria que originou o novo disco nasceu no concerto de estreia de Divertimento com a Filarmônica de Minas Gerais

por Silvana Arantes 12/09/2017 08:00

Fotos: SELO SESC/DIVULGAÇÃO
(foto: Fotos: SELO SESC/DIVULGAÇÃO)
Foi uma noite memorável para o compositor e instrumentista André Mehmari aquela de 10 de dezembro de 2015, quando ele assistiu à estreia de sua obra sinfônica Divertimento, composta sob encomenda da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais. O violoncelista Antonio Meneses, convidado especial num programa que incluía o Concerto para violoncelo nº 1 em mi bemol maior, op. 107, de Shostakovich, faria na mesma noite sua 14ª apresentação ao lado da orquestra mineira, mas a primeira na nova sede, a sala Minas Gerais, inaugurada 10 meses antes.

No jantar pós-concerto, Meneses e Mehmari, que se conheciam apenas de vista, puderam conversar mais longamente. A afinidade foi “instantânea”, lembra Mehmari, citando “o jeito de pensar a música, o rigor técnico”  como aspectos comuns a ambos. E a conversa entre comensais progrediu para um diálogo musical registrado no álbum AM60AM40, recém-lançado pelo Selo Sesc.

“Questão de semanas depois (do concerto em BH), eu, pensando sobre o que gostaria de fazer nesta temporada de 2017, em que haveria meu aniversário de 60 anos, pensei no André (Mehmari) como um partner perfeito para realizar – não sei se um sonho, mas uma ideia de me envolver um pouco na música popular brasileira, de que sempre gostei muito”, conta Meneses.

A proposta de Meneses a Mehmari –  que completou 40 anos neste 2017, daí o título do disco, com as iniciais e as idades de ambos –  era que “cada um invadisse um pouco o terreno do outro”, conta o violoncelista. “Tocaríamos o meu repertório e o dele. Algum tempo depois, ele disse que seria ótimo se estreássemos uma obra e, aos poucos, foi compondo essa Suíte brasileira, que contém cinco movimentos.” Mas isso não é tudo porque, “quando se fala de música instrumental brasileira, não se pode passar longe do choro e também da canção jobiniana”, aponta Mehmari, citando outras obras presentes no álbum, que “também passa por Bach e pela música argentina (Piazzolla e Ginastera)”.

Mergulhado no universo da música erudita desde a adolescência, Meneses tem na música popular brasileira uma memória afetiva. “Quando garoto, admirava muito meu pai cantando”, conta o filho de João Gerônimo de Meneses, pernambucano que se tornou primeira trompa da Orquestra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. “Ele tinha uma ótima memória e decorava todas as músicas que eram da época dele mais jovem, no Nordeste, desde Luiz Gonzaga até tudo quanto é canção bonita. Cantava em casa, pelo prazer de cantar.”

PALAVRAS Foi por achar “muito bonito esse canto prazeroso de meu pai” que Meneses desenvolveu o que ele chama de “uma vontade de cantar no violoncelo”. O que quer dizer: “Mesmo quando toco um concerto no violoncelo, é importante na minha interpretação fazer com que só faltem as palavras no instrumento. Uma extensão disso foi chegar até a música popular de que sempre gostei – o choro, a nordestina. A gente tocou um arranjo de A noite do meu bem, de Dolores Duran”.

Para Mehmari, também habituado a ouvir em casa uma musicista (sua mãe) tocando um instrumento (o piano) no melhor sentido da palavra amadora, a música é um território marcado não por limites bem traçados, mas por pontos de contato. “Não vejo as fronteiras entre música popular e erudita, como muitas pessoas têm facilidade de ver. Não tenho essa facilidade. Tenho facilidade de encontrar os pontos de interseção. Como tenho trajetória como compositor no universo da música de concerto, isso me ajudou a traduzir muita coisa com Antonio (Meneses), que, de fato, tinha uma vontade genuína de tocar essa música.”

Dada a trajetória de ambos, Meneses avalia que tenha sido mais fácil para Mehmari adaptar-se a ele do que o inverso. “Ele estudou música seriamente. Tem conhecimentos profundos de música. Isso naturalmente fez com que se adaptasse a mim talvez mais facilmente do que eu a ele. Nunca participei desse mundo da improvisação”, diz o violoncelista. Nos shows que os dois fizeram para promover o lançamento do disco – cinco até agora, sendo quatro no estado de São Paulo e um no Recife –, ficou claro para ambos que Meneses está à vontade no “mundo da improvisação” do qual Mehmari é um ser nato, incapaz de tocar a mesma peça duas vezes idênticas.

“Bem no comecinho foi um pouco estranho, mas não incômodo. Eu me acostumei muito rápido. Nós nos demos muito bem no palco. Aprendi a reagir melhor a tudo aquilo que ele faz. Ele, naturalmente,  reage também àquilo que eu tento, que é participar nessa liberdade. A minha liberdade é mais lógica, mais dinâmica”, comenta Meneses. AM60 e AM40 planejam “uma pequena nova temporada em dezembro, no Brasil”, conta Mehmari. “Esperamos que inclua BH. Gostaria muito, até porque o estopim foi realmente naquele jantar na estreia do Divertimento.”

AM60AM40
•  Antonio Meneses e André Mehmari
•  Selo Sesc
•  R$ 20

 

Crítica - Um disco indispensável apra qualquer músico 

Guilherme Nascimento*/Especial para o EM

AM60AM40 é mais um feliz encontro musical que desconhece as fronteiras do erudito e do popular. Mehmari é assim por formação. É um músico que não faz distinções entre essas duas esferas da música ocidental e que prefere se ater ao conteúdo emotivo de cada música, sem se preocupar com rótulos. Meneses não é diferente. Considerado um dos maiores violoncelistas eruditos de todos os tempos e vivendo desde os 16 anos na Europa, sente saudades da música brasileira da sua infância, que o pai, João Gerônimo, trompista do Municipal do Rio, cantava frequentemente.

O disco abre e fecha com uma obra de Johann Sebastian Bach. Do compositor alemão são quatro faixas ao todo. A primeira é a sinfonia da Cantata BWV 156 “Ich steh mit einem FuB im Grabe” (Eu estou com um pé no túmulo), em transcrição de Mehmari. A melodia desta sinfonia, contemplativa e de rara beleza, tem sido executada inúmeras vezes sob o título de Arioso. A segunda, uma obra pungente, na transcrição realizada pelo pianista e compositor russo Aleksandr Ziloti do segundo movimento da Toccata, Adagio e Fuga BWV 564, originalmente composta para órgão. A terceira transcrição de Bach é a do violoncelista francês Pierre Fournier do Prelúdio coral BWV 599 “Nun komm, der Heiden Heiland” (Agora venha, o pagão dos pagãos). O Prelúdio coral BWV 599 é a primeira peça do Orgelbüchlein, o Pequeno livro de órgão contendo 46 prelúdios corais que Bach compôs no início do século 18. É uma excelente oportunidade de conhecer essa obra tão raramente executada no Brasil. A quarta obra de Bach é a famosa Aria da Suíte orquestral nº3 BWV 1068, aqui na belíssima transcrição de Mehmari e encantadora execução de Meneses.

Mehmari é também o compositor de três obras do disco: Impermanências, Aurora nasceu e a fascinante Suíte brasileira para violoncelo e piano, em cinco movimentos (Prelúdio, Choro-canção, Frevo, Valsa e Baião), ponto central do disco, escrita especialmente para a ocasião e dedicada a Antonio Meneses. As composições de Mehmari têm certo sabor regional brasileiro. Às vezes nos remetem aos bailes do sertão nordestino, às vezes à música carioca do início do século 20. E Meneses, com sua musicalidade ímpar, sabe, como ninguém, inserir-se no universo de cada compositor.

Completando o disco temos duas peças argentinas e duas canções populares brasileiras. Pampeana nº2, de Alberto Ginastera, foi composta em 1950 para a violoncelista Aurora Nátola, que viria a se tornar sua segunda esposa. Trata-se de uma fantasia rapsódica que busca refletir as impressões do compositor sobre os pampas argentinos. Le grand tango, composta em 1982 por Astor Piazzolla e dedicada ao violoncelista Mstislav Rostropovich, sintetiza o espírito do Nuevo Tango, uma mistura do tango tradicional com elementos do jazz e da música erudita contemporânea. Mehmari aproveita as liberdades inerentes do tango e a fluidez temática de Piazzolla para criar seus próprios improvisos.

A música popular brasileira surge em dois arranjos de Mehmari. O primeiro é o belíssimo arranjo de uma já esquecida canção de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, Sem você, composta no final dos anos 50 e gravada por vários nomes da MPB. O segundo, um divertidíssimo arranjo para André de sapato novo, um choro do início do século 20 composto por André Vitor Corrêa e eternizado por Pixinguinha. Conta a lenda que a peça foi inspirada em um momento curioso da vida do compositor: um baile em que ele tinha que dançar com um sapato novo que lhe apertava o pé. Ao longo da música, as paradas representam os momentos em que André precisava parar de dançar para ajeitar o sapato.

Um disco indispensável de dois grandes músicos brasileiros que têm o dom especial de saber tocar em conjunto, de saber ouvir um ao outro e respirar juntos, de ser solistas e acompanhadores ao mesmo tempo.

*Guilherme Nascimento é compositor, doutor em música pela Unicamp, professor da Escola de Música da Uemg, autor dos livros Os sapatos floridos não voam e Música menor e escreve regularmente notas de programa para os concertos da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais.

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