Ícone do manguebeat, Chico Science completaria 50 anos neste domingo

Relembre a trajetória de Francisco de Assis França

por Larissa Lins Luiza Maia 13/03/2016 12:29

Gil Vicente/DP
À frente da Nação Zumbi, Chico cantou no festival Abril Pro Rock em 1994 (foto: Gil Vicente/DP)
Os caranguejos visitavam as casas e os quintais dos moradores da Rua Girassol. Na casa 83, morava o garoto Francisco de Assis França, em Rio Doce, Olinda. Caçula entre os quatro filhos de Dona Rita e Seu Francisco, nasceu há exatos 50 anos, no dia 13 de março de 1966. Veio ao mundo no Hospital dos Evangélicos, na Jaqueira. Da maternidade, Chico foi levado de barco, nos braços da mãe, para a casa da família, em Santo Amaro. "Tinha táxi na frente da maternidade, mas não peguei. Atravessei o rio com ele no barco e peguei o táxi no outro lado. Acho que foi uma intuição divina", revela Dona Rita, saudosa e cheia de orgulho, entre fotografias, vinis e objetos guardados do filho, morto em trágico acidente de carro no dia 2 de fevereiro de 1997.

A relação de Francisco com os manguezais e o fascínio pelo complexo ecossistema escolhido para batizar o movimento musical liderado por ele floresceram em Rio Doce, para onde se mudou aos 4 anos. Ao fim da rua onde morava, os garotos brincavam de catar caranguejo para comer ou arrecadar dinheiro para festas. Asmático, ia escondido da mãe, o dia inteiro à máquina de costura, apesar da proibição. "Ele tinha os amigos de andar de bicicleta, brincar no mangue, pião, perna de pau, bola de gude, carrinho de rolimã. Ele era um garoto levado. Era mais livre, porque os caçulas são mais soltos", revela a irmã Goretti França, 54 anos, com quem Chico morava quando morreu.

Apaixonado por cinema, levava para casa recortes de película de filme recolhidos ao fim das sessões no Cine São Luiz, na Boa Vista. A família era toda amante da música. O pai tocava tamborim amadoramente e gostava das “músicas de antigamente”. Os irmãos mais velhos apreciavam MPB nordestina, como Alceu Valença, Fagner, Novos Baianos. A Chico, cabia introduzir em casa novos sons. O ecletismo conduzia as descobertas, impulsionadas pelas revistas especializadas como a Bis, compradas no aeroporto, único ponto de vendas: black music, hip hop, jazz, blues e punk estavam entre os gêneros prediletos.

 

 


Adolescente, passou a frequentar as rodas de break, nas quais conheceu o também b-boy Jorge [Du Peixe], futuro parceiro musical. Garoto de periferia, estudante de escola pública até o fim do ensino primário, foi transferido para o Colégio Bairro Novo, onde surgiu a primeira banda liderada pelo então Chico Vulgo, a Orla Orbe, de 1987. O currículo do grupo tem menos de 20 apresentações, mas inclui a primeira gravação de A cidade. O embrião da Nação Zumbi foi a Loustal, segundo conjunto de Chico, criado em meio à tentativa de movimentar a cena cultural encabeçada por jovens fanáticos por música. O nome denotava outra paixão: os quadrinhos. Loustal era o ilustrador francês por trás de publicações como Cyclone e Rock and folk, encartadas no fim dos anos 1970 e devoradas por Chico entre ensaios.

Nos corredores da Empresa Municipal de Informática (Emprel), onde trabalhava, conheceu o contínuo Gilmar Bolla8, percussionista do bloco Lamento Negro. "Um dia, batendo papo, me perguntou o que eu gostava de ouvir. Descobrimos muitos gostos parecidos. Falei sobre a Lamento, os ensaios de samba-reggae na periferia, as aulas de capoeira e de percussão. E ele achou aquilo interessante", recorda. No sábado seguinte, Chico conhecia o grupo, no Daruê Malungo, cuja sede era na comunidade Chão de Estrelas, em Peixinhos.

Poucas semanas depois, Chico incorporou a batucada da Lamento Negro à sonoridade punk da Loustal, apesar do estranhamento inicial provocado nos integrantes, de ambos os lados. Os ensaios eram guiados pelo improviso e pela fusão dos ritmos. Mesmo com parco domínio dos instrumentos, conduzia os arranjos com batuques e sons emitidos com a boca. A alcunha Chico Science foi adotada sob inspiração do apelido de um tio sabichão do jornalista Renato L, segundo o próprio "ministro da comunicação" do movimento manguebeat, do qual foi ícone absoluto. A justificativa surgiu depois, conduzida pela alquimia intuitiva para misturar rock às sonoridades de afoxés, caboclinhos, escolas de samba e maracatus. Inspirado pelo legado histórico de Zumbi dos Palmares - ícones como Josué de Castro e Mestre Salustiano também foram reverenciados nas letras -, surgiu o nome da banda com a qual marcou a música brasileira: Chico Science & Nação Zumbi.

Science emprestaria a liderança e voz à Nação Zumbi por somente dois discos, lançados até no Japão. A carreira meteórica alcançou palcos internacionais a partir de 1995, quando a banda tocou no Central Park, nos EUA, e rumou à Europa. Pela primeira vez, um grupo de rock carregava, com as raízes regionais na bagagem e nos figurinos, o nome do estado aos holofotes da indústria musical e às manchetes da crítica especializada. Ele participou pela última vez de uma festa da turma em 6 de fevereiro de 1997, um dia antes do acidente de carro com o qual perdeu a vida. Na prévia do bloco Enquanto Isso na Sala da Justiça, no Centro de Cultura Luiz Freire, reencontrou amigos distantes devido à intensa agenda de shows. 

Chico conduziu os caranguejos com cérebro ao mundo e ao âmago da cultura pernambucana. Deixou uma filha, batizada Louise Taynã, e um legado repassado às gerações seguintes. Com chapéu de palha coquinho, óculos de segunda mão e camiseta de malha, impulsiona, quase 20 anos após a trágica morte, os sonhadores por um mundo melhor: "Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar".

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