Touro sentado

João Donato compõe e grava com os músicos do Bixiga 70 o álbum Donato elétrico

'A gente chama a garotada, mas tem de ter sempre o pajé da tribo', diz o músico de 81 anos sobre os jovens parceiros da cena paulistana

Eduardo Tristão Girão
Na casa do pianista João Donato, de 81 anos, todo mundo está gripado, menos ele.
“Durmo muito, mais de oito horas por dia. Isso deve ajudar. Tenho impressão de que isso deve ter a ver com repouso. Além disso, procuro não me envolver em confusão. Sou vacinado contra raiva, nervosismo e ódio. E com a música abençoando tudo, é um santo remédio. ‘Musicaterapia’”, afirma o artista.


Donato voltou a compor recentemente, graças a um encontro com músicos bem mais jovens, o que resultou no recém-lançado disco Donato elétrico (Selo Sesc).

São 10 faixas escritas por ele em parceria com instrumentistas de não mais que 30 anos, boa parte deles oriunda do grupo paulistano Bixiga 70. A junção explica-se pelo produtor do novo álbum: Ronaldo Evangelista também era o nome por trás do show Quem é quem, de dois anos atrás, no qual recriou repertório do disco homônimo, lançado em 1973, e justamente ao lado desses jovens instrumentistas. “Foi aí que começamos a pensar em fazer alguma coisa juntos”, lembra Donato.


A gravação foi em São Paulo, o que, para o veterano – habituado aos estúdios cariocas – fez toda a diferença. “Os músicos paulistanos sempre foram muito modernos, adiantados, evoluídos. São Paulo é muito dinâmica, diferente do Rio e da Bahia. Aquela coisa fervilhante, de trânsito congestionado às 4h da manhã e músico para todo lado. O pessoal do Rio é mais preguiçoso, e os da Bahia são quase parando. Tudo bem quanto a isso, mas muda a pronúncia, o resultado”, teoriza ele. As músicas foram compostas ao longo de um ano.


- Foto: ALEXANDRE NUNIS/DIVULGAÇÃO Desta vez, Donato não tocou piano, apenas teclados – rhodes, farfisa e moog, entre outros. O que não significa que, somado ao fato de seus parceiros terem menos da metade da sua idade, o artista tenha radicalizado no som. Ao contrário, o balanço característico está lá, e as composições têm aquele molho cujo sabor fica entre o Brasil e o Caribe. No entanto, os ouvintes de antigos sucessos como A rã e Emoriô vão reconhecer que há frescor no disco, de instrumentação mais exuberante.

SOPRO De fato, além do vigor da juventude, há no trabalho uma ampla “palheta de cores” que vai além do habitual em se tratando das formações enxutas de Donato. Isso se deve sobretudo à forte presença de instrumentistas de sopro – com saxofones, trompete, trombone, clarone e flauta.

Além disso, percussionistas, um vibrafonista e um quarteto de cordas – vale registrar a presença de cabeças experientes como Guilherme Kastrup, Mauro Refosco (ambos na percussão) e Marcelo Cabral (arranjos).


“Não posso largar A rã e Emoriô, mas continuarei nesse caminho de fazer coisas novas com o pessoal que for encontrando pela frente. No caso de Minas, gente como Juarez Moreira e Toninho Horta, não necessariamente garotos (risos). Tem também Thiago Delegado e Aline Calixto. Mas não posso deixar os veteranos de fora, pois eles são os caras. A gente chama a garotada, mas tem de ter sempre o pajé da tribo”, resume.


Pajé ou, como o próprio pianista gosta de se referir a si mesmo, “cascudo”: “Ali, o único assim era eu”. E não há nenhuma conotação negativa nesse comentário dele, como faz questão de reiterar: “Continuo do mesmo jeito de quando comecei a gravar, aos 16 anos, com Altamiro Carrilho, ainda na época do disco de 78 rotações. Sinto a mesma alegria e felicidade. A música mantém na gente o vigor da vida, dá longevidade às pessoas. É um bálsamo”.


Foi com essa leveza que Donato entrou em estúdio com cerca de 25 músicos. Sem nada ensaiado previamente, as ideias praticamente surgiram na hora.

O pianista apresentava um tema ou apostava num compasso, os colegas contribuíam com mais ideias e, ao final, os trechos mais promissores eram separados em meio ao material do dia. “Não foi assim tão fácil, pois eram muitos instrumentos”, relativiza o pianista. Era quase uma jam session.


Se ele prefere entrar em estúdio com tudo ensaiado ou sem nada programado? “As duas formas são boas. Em casa, posso compor um tema buscando umas combinações, com calma. No estúdio, a gente pode inventar coisas muito à vontade e cheguei a fazer muito isso com Tião Neto e Milton Banana. Frases como ‘Vamos nessa’ e ‘Só se for agora’, por exemplo, acabaram virando nomes de músicas de discos meus justamente porque foram feitas na hora”, conta.


Como foi um registro mais espontâneo do que premeditado, Donato revela que tem escutado o disco de novo para reaprender a tocar as novas músicas. Pode parecer enfadonha, mas, nas palavras dele, a tarefa é descrita de maneira mais poética: “Estou recapturando aquilo que foi feito com felicidade. É um disco gostoso, que não me canso de ouvir”.

 

 

 

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