Chega às lojas uma minuciosa seleção do legendário trompetista Miles Davis

'The Bootleg Series Vol. 4' chega às lojas com sessões ao vivo e inéditas, gravadas durante suas apresentações no mítico Newport Jazz Festival

por Álvaro Fraga 22/11/2015 07:00
Reedit.com/reprodução da internet
Compositor e band leader de jazz norte-americano, Davis é considerado um dos mais influentes músicos do século 20 (foto: Reedit.com/reprodução da internet )

Miles Davis, um dos deuses do jazz, se apresentando no santuário do Newport Jazz Festival, num lapso temporal de 20 anos. Este é o original presente sonoro de Natal que a Sony Music traz para os apreciadores do gênero e fãs incondicionais do trompetista. 'Miles at Newport 1955-1975 – The Bootleg Series Vol. 4' chega às lojas com uma minuciosa incursão pela inquietação e liberdade criativa do músico.

São pelo menos quatro horas de sessões ao vivo e inéditas do trompetista na companhia de outros gênios do quilate de Thelonius Monk, Gerry Mulligan, Zoot Sims, John Coltrane, Bill Evans, Cannonball Adderley, Wayne Shorter, Ron Carter, Chick Corea, Jack DeJohnnette e Keith Jarrett. Uma incrível jam session do princípio ao fim.

A ordem cronológica dos CDs permite a audição didática das distintas fases da carreira de Miles Davis. Salta aos olhos (e aos ouvidos) a transformação pela qual o intrumentista passou nos 20 anos retratados nas gravações, indo do bebop ao jazz fusion, uma inventiva união com o rock, funk e outros gêneros.

Com direito à participação de Duke Ellington como mestre de cerimônia, a faixa de abertura do primeiro CD é 'Hackensack' (Thelonius Monk), seguida de 'Round midnight' (parceria de Monk com Cootie Williams e Bernie Hanighen) e 'Now’s the time' (Charlie Parker).

Os três registros são de 17 de julho de 1955, com uma banda formada por Davis, Zoot Sims (tenor sax), Gerry Mulligan (sax barítono), Thelonius Monk (piano), Percy Heath (baixo) e Connie Kay (bateria). Abrindo mão dos demais músicos, Miles e Monk estabelecem uma grande intimidade musical em 'Round midnight'. Trompete e piano somente. Nada mais é necessário.

O set da apresentação em julho de 1955 é fechado com uma homenagem a Charlie Parker, como Miles Davis faz questão de dizer, com 'Now’s the time'. Alegre, intenso, o bebop de Parker ganha uma inspirada versão com Miles “batendo bola” com os saxofones de Zoot Sims e Mulligan e, como sempre, com o piano de Monk.

Parceria com Coltrane

Um salto de três anos e as sete faixas seguintes do primeiro CD registram a apresentação de 3 de julho de 1958. Miles Davis com Cannonball Adderley (sax alto), John Coltrane (sax tenor), Bill Evans (piano), Paul Chambers (baixo) e Jimmy Cobb (bateria).

Os 40 minutos de música que se seguem deixam no ar uma pergunta: por que Miles e Coltrane não gravaram mais juntos? Por que esse encontro de genialidades foi tão efêmero? Coltrane integrou o Miles Davis Quintet entre 1955 e 1960 e os dois, extremamente temperamentais, chegaram a trocar socos e empurrões.

Essa belicosidade se reflete de maneira inspiradora nos sete temas registrados em Newport. O que fica da audição é a certeza de que há um duelo no ar. Miles desafia Coltrane e espera a resposta. O troco vem em seguida, como uma sucessão de golpes em um ringue. Às vezes, a elegância do piano de Bill Evans ou do baixo de Paul Chambers marca o intervalo para que os dois instrumentistas recuperem o fôlego e voltem ao combate.

'Straight no chaser' (Thelonius Monk) é o ápice desse embate de sonoridades, enquanto 'Fran-dance' (Miles Davis) e 'Bye bye blackbird', menos intensos, pontuam os caminhos que trompetista e saxofonista seguiriam até se tornarem dois dos maiores nomes do jazz. Um dos grandes momentos da primorosa edição da caixa de CDs.

O segundo álbum começa com o registro da gravação em 4 de julho de 1966 e tem Miles ao lado de jovens músicos: Wayne Shorter (sax tenor), Herbie Hancock (piano), Ron Carter (baixo) e Tony Williams (bateria). Nas seis faixas que integram este set, o experimentalismo é a tônica, como se Miles estivesse abrindo as portas da percepção sonora para além do jazz e do blues.

Pinceladas de influências do Oriente podem ser percebidas nas notas do trompete de Miles Davis, como em 'All blues', quase uma referência explícita a 'Caravan', música que Duke Ellington transformou em um dos clássicos do jazz. Só que em 'All blues' o bucolismo é quebrado por notas mais altas, solos instigantes e bateria intensa. A balada 'Stella by starlight', outro standard do jazz, é recriada por Davis de forma surpreendente. Poucos seriam capazes de ouvir e identificar na versão carregada de energia a romântica música gravada à exaustão por dezenas de instrumentistas e cantores de jazz.

Música contemporânea


Um ano depois, em 2 de julho de 1967, Miles Davis retorna a Newport. Os músicos que o acompanham são os mesmos do ano anterior e a música que abre a apresentação é a mesma: Gingerbread boy (Jimmy Heat). Mas as semelhanças param aí. A releitura é ainda mais forte, mais radical em sua dissonância. A bateria tem papel ainda mais destacado nos solos com o trompete de Davis.

É música contemporânea, engajada em seu momento histórico: flower power, Guerra do Vietnã, explosão do rock. Miles não quer ficar para trás e a proposta de estar na vanguarda, de ser vanguarda perpassa todas as seis músicas do set.

Partitura de 'So what?', uma de suas mais conhecidas músicas
(foto: Partitura de 'So what?', uma de suas mais conhecidas músicas)
Um jazzista transgressor

A evolução da trajetória de reinvenção de Miles Davis é ainda mais visível no terceiro CD, que tem a presença do trompetista em Newport, em 5 de julho de 1969, no Jazz Newport Festival in Europe (em Berlim, em novembro de 1973), e em Nova York, em julho de 1975.

A linha do tempo que marca a opção pelo jazz fusion pode ser percebida o tempo todo, seja pela presença de músicos como Chick Corea (piano elétrico) e Jack DeJohnette (bateria), seja pela introdução da guitarra e do baixo elétrico, uma heresia para os puristas do jazz.

Não há limites para o diálogo do trompete com esses instrumentos e também com a bateria. 'Miles run the voodoo dows', 'Sanctuary' e, em especial, 'Turnaroundphrase' exploram até o limite as intrincadas sonoridades imaginadas e executadas por Davis e seus músicos. Esta última, apresentada em 1973, é uma overdose de sonoridades psicodélicas.

O penúltimo álbum da caixa traz como desfecho uma única interpretação de Davis. A edição do Newport Jazz Festival é em Nova York, em 1º de julho de 1975. Além do trompete, Miles toca órgão e se faz acompanhar de septeto com a presença de duas guitarras, baixo elétrico e percussão.

O quarto e último CD da caixa faz um recuo no tempo de quatro anos, em comparação com o anterior, e traz sete registros de 1971, gravados em 22 de outubro, em uma edição do Newport Jazz Festival in Europe na Suíça.

SIMBIOSE


A formação do sexteto que acompanha Miles foge totalmente dos padrões jazzísticos, com duas bateristas e dois percussionistas, além de piano elétrico (Keith Jarrett) e baixo elétrico. Os sete temas da apresentação têm uma simbiose que beira a perfeição, sendo quase imperceptível a passagem de uma faixa para outra, como se fossem partes de uma única composição.

Ao mesmo tempo introspectivo e explosivo, Miles faz um mix de sonoridades. A faixa mais emblemática dessa combinação é Funky tonk, com duração superior a 25 minutos. Os acordes mais originais e inesperados se sucedem de maneira aparentemente desordenada, mas fazem todo o sentido. Passagens silenciosas entre um solo de sax ou de trompete em surdina e o som de um chocalho ou da bateria harmonizam ingredientes tão distintos. É Miles Davis no auge de sua genialidade e espírito transgressor e inconformista.

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