Musica

Zélia Duncan grava seu primeiro álbum dedicado ao samba

No disco 'Antes do mundo acabar', cantora presta homenagem ao samba de raiz gravando Paulinho da Viola, Moacyr Luz e Dona Ivone Lara e apresenta suas parcerias com Xande de Pilares

Kiko Ferreira

CD da cantora Zélia Duncan dedicado ao samba tem produção de Bia Paes Leme
Pedra que rola não cria limbo, diz a máxima do rock. Se depender de movimento, Zélia Duncan não corre riscos de ser atingida por crises e ter tempo para lamentos. Depois de recriações de alta qualidade das obras de Itamar Assumpção e Luiz Tatit, um show dedicado ao repertório de Milton Nascimento e homenagem a Maria Bethânia, ela gravou Antes do mundo acabar, primeiro trabalho inteiramente dedicado ao samba que sempre admirou e namorou.


Mesmo quando seu nome era ligado a um formato mais pop de música, ela se saiu bem em participações em projetos como Casa de Samba, Samba Social, Samba do Trabalhador e Sambabook. Esteve em projetos coletivos dedicados a Noel Rosa, Wilson Baptista, Jovelina; produziu o CD Timoneiro, espécie de songbook de Hermínio Bello de Carvalho; editou o livreto Álbum de retratos, com fotos e histórias de Dona Ivone Lara, além de ter parcerias de Mart’nália e Ana Costa.

O catalisador para a concretização da empreitada veio no ano passado, quando foi convidada para escrever o texto de apresentação do 25º Prêmio da Música Brasileira, em que o homenageado era o samba. Na cerimônia, que ocorreu em maio passado, no Theatro Municipal do Rio, emocionou plateia e músicos reverenciando o gênero pai de todas as bossas.

Produzido por Bia Paes Leme, parceira em projetos de sucesso como Eu me transformo em outras e Totatiando, Antes do mundo acabar começou como projeto de intérprete. Zélia e Bia já estavam com uma lista de três dezenas de músicas quando começaram a aparecer temas dela em parcerias com Ana Costa, Arlindo Cruz e Xande de Pilares. Definido o perfil autoral, ainda entraram em cena Pedro Luís e Zeca Baleiro, a relação inicial de temas alheios caiu de 30 para quatro e o repertório de 14 faixas passou a incluir 10 sambas inéditos e autorais.

Resolvido o repertório, faltou definir a sonoridade. O violonista Marco Pereira, que ganhou fama a partir do trabalho com Gal Costa, foi convidado para fazer os arranjos. A escalação dos músicos foi econômica. Marco nos violões, Thiago da Serrinha tocando todos os instrumentos de percussão e se revezando na terceira posição, Webster Santos (violão, viola, cavaquinho) e Luís Barcelos (cavaquinho e bandolim), com a gaita de Gabriel Grossi e o violão 7 cordas de Rogério Caetano. E boa parte das vezes a tentativa foi de gravar de primeira, como num sarau. Uma ação entre amigos.

GRUDE O CD abre com Destino tem razão (Xande de Pilares/Zélia), em que a trama de violões e bandolim serpenteia com voz de roda de samba sobre uma letra que soa ao mesmo tempo romântica e épica, como a faixa seguinte, Dormiu, mas acordou (Arlindo Cruz/Zélia), com refrão que gruda de primeira; “Nosso amor dormiu, mas acordou/ dormiu mas acordou/dormiu mas acordou feliz”. Parceria com Ana Costa, Alameda de sonho trata da felicidade, mesmo que de vez em quando, seguida da deliciosa Por que você não me convida agora?, do baiano Riachão, com destaque para a viola de Webster Santos. Mais politizada do repertório, No meu país? (Xande de Pilares/ Zélia) é cantada pelos dois autores e crava uma no prego e uma na ferradura: “O meu país tá precisando se resolver/ se vai olhar pro futuro ou envelhecer”.

A faixa-título, parceria com Zeca Baleiro, é um samba classudo, cheio de imagens românticas, entre sonhos impressos em travesseiros e o amor como bomba-relógio que não foi desarmada. Com percussão mais suave e a gaita de Gabriel Rossi ampliando o leque de timbres, Olha, o dia vem aí (Xande de Pilares/Zélia) é prova de que uma cantada pode ser elegante. Parceria com Bia Paes Leme, Eu mudei tem como novidade o cavaquinho de Webster Santos e, ao falar de mudança, lança um verso certeiro: “Entre dois finos pingos de chuva eu mudei”.

Na reta final do disco, boas releituras de Paulinho da Viola (Pintou um bode), Dona Ivone Lara (Em cada canto uma esperança, com Délcio Carvalho) e Moacyr Luz (Vida da minha vida), além de uma gravação de Juízo final, de Nelson Cavaquinho, na versão digital. Feita para o disco pelo trio Pretinho da Serrinha/Leandro Fab/Fred Camacho, Por água abaixo trata de um fim de caso clássico, enquanto outra parceria com Ana Costa, Pra quem sabe amar, com vocal das duas, trata de uma alegria bendita, de viciar. E ainda tem Um final, samba de corte clássico feito em parceria com Pedro Luis, com imagens dignas de Orestes Barbosa, com o cavaquinho de Luis Barcelos deixando sabor de fundo de quintal.

"Sou mais formiga que cigarra"

 

Na entrevista a seguir, Zélia Duncan diz que sente os efeitos da crise, mas carrega “o palco nas costas”, se diz contra a existência da meia-entrada e afirma que não sabe qual é seu estilo.


Recentemente, você se transformou em Tatit, Itamar, Milton... O que esses shows e discos dedicados a outros autores mexeram com seu estilo, sua obra, sua forma de cantar e compor?
Eles são a minha possível obra... Não sei falar assim do que faço, fico achando que minha tarefa é fazer, sabe? Nem sei qual é meu estilo! Tudo me influencia. Milton eu ouvia com 16, 17, 18 anos na veia. Itamar, Tatit, tudo isso veio no meu pacote, desde sempre.

Fale do processo de concepção e gravação do disco. Parece que ficou muita música de fora. Vem aí o volume dois?
Não. Jamais. Meu papo é o presente e esse disco chega carregado de um monte de sinceridade e gratidão. Escolher é, principalmente, abrir mão!

Alcione gravou uma versão de Juízo final, de Nelson Cavaquinho, para a novela A regra do jogo e a mesma música está em seu disco. Pode comentar a coincidência?
É uma faixa digital, não está no disco oficial. Pediram que eu gravasse e gostamos tanto que ficou. Alcione é um clássico tão importante quanto Nelson Cavaquinho. Estar perto deles é uma delícia.

Os especialistas dizem que o samba enredo hoje perdeu a magia, que mais parece marcha. Boa parte do samba mais comercial anda, há muito tempo, meio Motown, com os grupos uniformizados cantando música romântica. Como você vê o samba feito hoje em comparação com outras épocas? Quem você respeita e gosta da geração atual?
Meu álbum tá bem vazio, sem massa sonora, valorizando a canção, o suíngue puro de Thiago da Serrinha, a elegância de Marco Pereira. Vem numa contramão, mais na praia do Riachão, que lançou um álbum espontâneo e bem tocado, há uns dois anos, sob os cuidados de Vania Abreu e músicos econômicos e excelentes. Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho, Jorge Aragão, Sombrinha, Moacyr Luz e Fundo de Quintal são nomes sempre fundamentais no que se faz ainda hoje e os que gosto de ouvir. Almir Guineto, os mais velha- guarda e que estão aí, Monarco, Seu Wilson Moreira. Dos mais novos, Ana Costa, Xande de Pilares, por sorte viraram parceiros! Pretinho da Serrinha. Eu estou sempre perseguindo mais a raiz, a consistência, a fonte! Eles que me ensinam! Sem falar em Martinho, Candeia, Cartola, Paulinho, ai, ai, a lista não termina...

Como você está vendo a situação do país? A crise a atingiu? Ou você trabalha tanto que não dá tempo?
Claro que atingiu, imagine! A gente sente em toda parte, em todas as áreas. Mas eu sou mais formiga que cigarra, carrego o palco nas costas!

O que você achou das regras de regulamentação e como você avalia a existência da meia-entrada?
Sou contra, não entendo por que querer controlar na cultura o que não se controla em lugar nenhum. As entradas ficam mais caras, porque qualquer pessoa falsifica uma carteira de estudante. Todos sabem disso.

Como vai a vida de atleta?
Corrida! (risos)