Musica

Gaga 'Made in Minas', Keila Fernandes Pereira se divide entre a função de tratorista e cover da popstar

Mineira se apresentou na Virada Cultural para uma plateia de 3 mil pessoas na Guaicurus

Mariana Peixoto

Keila Gaga fez o maior sucesso na Virada Cultural, no último fim de semana, em Belo Horizonte
Nos dias úteis, ela é Keila Fernandes Pereira, caçula de 12 irmãos, todos filhos do mesmo pai e da mesma mãe. Só completou o ensino fundamental não por opção, mas porque a vida a levou para outro caminho. Desde a adolescência, trabalha na terra. Cultiva pimentão, abobrinha, berinjela e milho. Há dois anos, tornou-se tratorista.


Nos fins de semana, Keila assume outra persona. Coloca unhas postiças, lentes de contato, roupas sensuais. Transforma-se em Keila Gaga, cover de Lady Gaga. Com 18 bailarinos em cena, cenário (um caixão e uma espécie de trono) e figurinos produzidos por ela e seu grupo, dubla canções de Stefani Germanotta. Keila e Stefani têm a mesma idade, 29 anos.

A lavradora é o mais próximo de uma popstar que a comunidade rural de Noiva do Cordeiro, na região de Belo Vale (distante 110km de Belo Horizonte), conhece. Há pelo menos quatro anos faz o show de Gaga. São apresentações pequenas no lugar onde vive, algumas participações em shows de outros artistas (abriu para o cantor sertanejo Eduardo Costa), performances em cidades do interior e até uma aparição na São Paulo Fashion Week. Já usou cabelo azul e preto. Atualmente, exibe um loiro platinado.

Foi no último sábado, na Rua Guaicurus, durante a Virada Cultural, que Keila fez o show que, acredita, pode se tornar um divisor de águas em sua trajetória. Para uma plateia de 3 mil pessoas, apresentou-se por mais de uma hora. Foram 11 covers de Gaga, que ela dubla à perfeição. Sem pudor, a performance, com forte apelo trash, busca repetir os trejeitos da cantora.

Keila durante apresentação na Virada Cultural de BH
Na plateia, um misto de frequentadores da região, muitos jovens e ainda um grupo facilmente identificável. No gargarejo, dezenas de jovens, de faixa branca na cabeça com a inscrição Keila Gaga. Eram amigos e parentes de Noiva do Cordeiro, que lotaram dois ônibus para assistir a ela em BH. Assim que o show terminou, por volta da meia-noite de sábado, a artista e seu séquito não ficaram no Centro para participar da Virada. Voltaram para os respectivos ônibus para fazer o trajeto de volta para a roça.

A exemplo de outras performers do interior – como a piauiense Stefhany –, Keila Gaga é cria da internet. No caso da mineira não houve, pelo menos por ora, nenhuma explosão viral. Mas, sem a web, ela afirma, não haveria nenhuma Keila Gaga.

Fora da ordem

Para Keila, até parece que ela nasceu %u201Ccom o dom para o papel%u201D
Noiva do Cordeiro, onde vivem 350 pessoas, foi a primeira comunidade rural de Minas Gerais a ser informatizada. Até 2006, seus moradores não sabiam o que era internet. E foi a partir dela que Keila e seus amigos conheceram a música de Lady Gaga – o álbum de estreia da norte-americana é de 2008. “O que me encantou nela foi a liberdade de ser o que acredita e sua luta contra o preconceito. Nós sofremos muito preconceito na comunidade. Teve até fofoca dizendo que a gente era prostituta”, afirma Keila.

Criada no final do século 19, Noiva do Cordeiro tem uma história marcada pela quebra de regras. No passado, sua população não adotou o catolicismo. O casamento também nunca foi regra. “Se for para casar, é pelo coração”, diz Keila. Ainda hoje, sua população é basicamente feminina (cerca de 90%). Nos dias úteis, são elas que cuidam da terra e do plantio. Os homens, em busca de sustento, vivem em cidades maiores.

Sofrendo com o isolamento no passado e com os boatos no presente – o mais recente deles, de 2014, foi uma série de reportagens em jornais europeus dizendo que uma cidade brasileira composta por mulheres fazia apelo aos solteiros para se casarem –, ela se armou da maneira com que sempre viveu. Optou pela coletividade.

A renda gerada pela lavoura é dividida por todos. “Antigamente, a gente plantava só para nosso consumo. Agora que a lavoura cresceu, comercializamos na Ceasa”, conta Keila. Na comunidade, à exceção dos idosos, todo mundo trabalha. E de domingo a domingo. “Agora, não estamos com muito dinheiro, pois investimos na lavoura. Mas o que sobra da venda de hortaliças a gente divide. Mas não é uma quantia certa”, conta a artista-tratorista.

Vida maravilhosa

A dublê de artista pop e seu grupo, durante uma pausa no batente
O coletivo também pauta as relações pessoais. Quando perguntada quantos irmãos tem, Keila se vira com outra pergunta: “De sangue?”. Isto porque, em sua casa, a principal da comunidade, vivem 103 pessoas. A mãe dela, Delina Fernandes Pereira, de 72 anos, adotou muitos parentes ao longo dos anos. Tornou-se a matriarca da comunidade. “Há uns 20 anos, uma prima casou fora e se separou do marido. Com 12 filhos, ela foi morar em Belo Horizonte. Eles estavam até com dificuldade para comer, então minha mãe os convidou para morar com a gente. Onde cabem 12, cabem mais 12”, relembra.

Desta maneira, a família foi crescendo, e a casa, mudando. Ela acredita que a moradia tenha hoje 40 quartos. “A vida aqui é maravilhosa. Para viver todo mundo junto, é preciso muita confiança. Mas as pessoas te ajudam, te acrescentam. Não fosse o pessoal daqui, eu não ia conseguir seguir em frente com a Gaga.”

As apresentações fora de Noiva do Cordeiro são raras. Mas, para a comunidade, sempre que pedem, ela dá uma palinha. Também não tem como ser diferente. Foram as meninas e meninos de lá que a ajudaram a montar a coreografia e a conceber os figurinos, confeccionados numa pequena fábrica de lingerie que existe na comunidade.

“Até a Keila Gaga (ela sempre fala da personagem na terceira pessoa), eu nunca tinha feito nada. Só teatro na comunidade. Então, nem eu sei explicar de verdade como consigo fazer. Parece que nasci assim, com o dom para o papel”, conclui.

A GRANDE FAMÍLIA

A história da comunidade de Noiva do Cordeiro foi revelada pelo Estado de Minas em 2007, em reportagem de Gustavo Werneck. No fim do século 19, Maria Senhorinha de Lima casou-se, por pressão familiar, com um descendente de franceses, Arthur Pierre. Três meses depois, ela abandonou o marido para viver com Chico Fernandes. O novo casal, que rompeu com dogmas religiosos e sociais, se mudou para o local onde seria formada a comunidade. A matéria acabou servindo de base para o documentário Noivas do cordeiro, de Alfredo Alves. Lançado pelo canal pago GNT, ele é narrado pela escritora Lya Luft.