Musica

Obras de Pixinguinha são reunidas em box

Ao todo, 69 partituras de arranjos escritos por ele para obras próprias e de outros autores foram reunidas no novo trabalho. Clássicos e composições desconhecidas compõem as caixas

Ailton Magioli

Consagrado internacionalmente como o autor de 'Carinhoso', da parceria com João de Barro (1907-2006), Alfredo da Rocha Vianna Filho (1897-1973), o Pixinguinha, começa a ter uma faceta menos conhecida de sua obra revelada graças ao lançamento das caixas 'O carnaval de Pixinguinha' e 'Pixinguinha – Outras pautas', ambas do Instituto Moreira Salles (IMS), em parceria com as Edições Sesc e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.


Enquanto a primeira reúne 44 arranjos do flautista, saxofonista e compositor, a segunda traz outros 25, em sequência ao trabalho iniciado com 'Pixinguinha na pauta', de 2010, com mais 36 arranjos de sua autoria. Organizadas por Bias Paes Leme, coordenadora musical do IMS, Marcílio Lopes, Paulo Aragão e Pedro Aragão, as novas caixas contabilizam 69 partituras, incluindo clássicos como 'Carinhoso' e 'Lamento', além de arranjos feitos pelo mestre para músicas de Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Sinhô, Anacleto de Medeiros, Donga e João da Bahiana.


 Temas de tradição popular orquestrados também integram os estojos, ambos com livretos especiais que trazem informações sobre as composições, arranjos e pesquisas feitas a partir do material. A maior parte deste rico acervo tem origem na produção de Pixinguinha para o programa 'O pessoal da velha guarda', da Rádio Tupi, comandado por Henrique Foréis Domingues, o Almirante, entre 1947 e 1952, além de também utilizar o repertório de 'Carnaval da velha guarda' e 'Assim é que é', discos da gravadora Sinter, lançados na década de 1950.

“Como a obra dele é muito grande, o compositor acaba ficando na frente do arranjador”, constata o neto de Pixinguinha, o cantor Marcelo Vianna, de 45 anos. “O acervo de Pixinguinha que tínhamos em casa está no Instituto Moreira Salles, mas há muita coisa espalhada ainda em acervos particulares, como o de Mozart de Araújo”, afirma Marcelo. “Até Tinhorão tinha obras de meu avô”, afirma o neto, lembrando que o acervo do crítico musical José Ramos Tinhorão foi vendido para o IMS.

Na opinião de críticos e especialistas, os cerca de 300 arranjos escritos por Pixinguinha para a Orquestra do Pessoal da Velha Guarda constituem o auge da carreira do mestre como arranjador. “O seu pleno domínio da escrita orquestral popular e a riqueza do repertório fazem desse material um verdadeiro tesouro da música brasileira, pouco conhecido entre os admiradores de Pixinguinha e mesmo entre os estudiosos de sua vida e obra”, diz Paulo Aragão, um dos organizadores das caixas.

“Sabemos que ainda há muita coisa de meu avô espalhada”, diz o neto Marcelo Vianna, que, depois de criar o Instituto Pixinguinha, há quatro anos, acredita ter chegado a hora de ele ir ao mercado. “A grande ideia da família com o IMS foi a parceria. Eles fazem isto muito bem”, elogia a edição das duas novas caixas com os arranjos do avô. A ideia de Marcelo, no entanto, é estender a parceria a outras entidades e instituições. “No momento, a nossa preocupação é com a viabilização de projetos”, anuncia ele, admitindo que a sede do instituto no Rio de Janeiro virá em um segundo momento.

Marcelo Vianna lembra que se deu conta da obra de Pixinguinha na adolescência. “Na época, quis criar um esqueleto com as composições, os arranjos e as orquestrações”, recorda, salientando que a maioria da produção do avô está, de fato, no acervo que a família doou ao Instituto Moreira Salles. “A Biblioteca Nacional também tem muita coisa”, acrescenta o neto, que perdeu o avô aos 4 anos.

 

Contraponto

 

Que o diga o cavaquinista Henrique Cazes, que, na década de 1980, encontrou uma coleção de arranjos do mestre que nunca foram gravados, na Biblioteca Nacional. Tais arranjos acabaram responsáveis pelo surgimento da Orquestra Pixinguinha, com a qual o músico gravou dois discos com parte do repertório.

Ao chamar a atenção para o trabalho de Pixinguinha, Cazes recorre a outro mestre, o maestro Guerra-Peixe. “Ele dizia que Pixinguinha deve ser encarado como um ponto a ser seguido pelos orquestradores brasileiros. Seus trabalhos nessa especialidade deixam transparecer valores típicos da nossa música popular, seja em harmonia, contraponto, ritmo e feição regional. Tanto assim que é considerado, com muita razão, o único orquestrador que dá força regional à nossa música", ressalta o cavaquinista.

Para Cazes, Pixinguinha foi de fato um arranjador genial e único. “Seu estilo combinava em proporções perfeitas uma rara imaginação melódica com um balanço insuperável”, diz. “Sem lançar mão de acordes sofisticados, Pixinguinha vestia de alegria e originalidade cada obra sua ou de outro autor”, acrescenta. Antes mesmo de Radamés Gnatalli, como faz questão de lembrar Henrique Cazes, Pixinguinha lançou as bases da linguagem orquestral da música brasileira e, com amplo domínio da instrumentação, marcou época em rádios e gravadoras, onde fornecia o aparato musical a intérpretes como Fancisco Alves, Carmem Miranda, Mário Reis e muitos outros.

Das gravadoras Odeon, Par-lophon e Brunswick, onde começou a orquestrar, regularmente, em 1928, à RCA Victor, na qual organizou a Orquestra Victor Brasileira, Pixinguinha ainda seria o responsável pela criação da Orquestra Típica Victor, os Diabos do Céu e o Grupo da Guarda Velha. Durante 30 anos ele dividiu os arranjos na RCA Victor com Radamés Gnátalli. “O que fica disso tudo para mim é a felicidade de ver esta obra vir para o mercado. A possibilidade de as orquestras tocarem os arranjos, por meio dos quais Pixinguinha se reinventa o tempo inteiro”, conclui Marcelo Vianna.

 

Palavra de especialista - Henrique Cazes, músico e pesquisador

 

Pixinguinha e a elite branca


Nascido na classe média carioca de fins do século 19, Pixinguinha viu desde cedo seu enorme talento reconhecido pela hoje demonizada “elite branca”. Foi para tocar no elegante Cine Palais que ele organizou, em 1919, os Oito Batutas, conjunto que o projetou


e que três anos depois, graças ao milionário Arnaldo Guinle, chegou a Paris. Na Cidade Luz, Guinle deu a Pixinguinha seu primeiro saxofone. Algum tempo depois, outro expoente da elite carioca, o cantor Mário Reis, ajudou a consagrar o estilo de arranjo de Pixinguinha. Outros ricos influentes ajudaram o mestre do choro, como Paulo Machado de Carvalho e Paulo Bitencourt, donos de órgãos de comunicação importantes nas décadas de 1940 e 1950. Ao preservar, restaurar e disponibilizar o acervo de Pixinguinha, o Instituto Moreira Salles, legado de grande valor idealizado por outro expoente da “elite branca”, completa o ciclo de valorização.

 

Agora, só o povo e os governos devem a Pixinguinha.