Musica

Lou Reed: O homem que não amou o sol

Carlos Marcelo

Sadomasoquismo, prostituição, desilusões, vícios. As letras de Lou Reed, conhecidas a partir de sua banda, The Velvet Underground, formaram nos anos 1960 o contraponto áspero para as mensagens edificantes difundidas pelos hippies. Enquanto, em San Francisco, a turma paz & amor se preocupava com as flores na cabeça, o nova-iorquino Reed cantava: “Quem ama o sol, quem se importa se ele faz crescer as plantas... Nem todo mundo ama o sol” ('Who loves the Sun', do disco 'Loaded'). O Velvet Underground não vendeu tantos discos quanto os contemporâneos Beatles e Stones. Mas quem ouviu não passou incólume pela sonoridade forte, dissonante e hipnótica da banda que desbravou o lado mais selvagem do rock. “O primeiro disco do Velvet Underground vendeu apenas 10 mil discos, mas todos que compraram formaram uma banda.” A frase, atribuída a Brian Eno, sintetiza a influência do Velvet, que atravessou décadas e sobrevive até hoje. “Aquele disco é o melhor de todos. Tão bonito, tão inspirador, tão cool”, comentou ontem, via Twitter, um dos integrantes da banda escocesa Teenage Fanclub, Norman Blake, ao saber da morte de Reed.


Só que Lou Reed foi além do underground. Nos anos 1970, experimentou certa popularidade graças a sucessos como 'Walk on the wild side', 'Satellite of love' e 'Perfect day' (redescoberta nos anos 1990 pela trilha de 'Trainspotting') e às interpretações de amigos como Iggy Pop e David Bowie. Não facilitou, porém: gravou discos belos e sombrios ('Berlim'), outros inexpugnáveis ('Metal Machine Music'). Neste último, ainda provocava no encarte: “Uma semana minha vale mais do que um ano seu”. A carreira, então, padeceu de certa irregularidade até 1989, quando concebeu a obra-prima New York, considerado um dos 20 melhores álbuns dos anos 1980 pela revista Rolling Stone. Cria do Brooklyn, Reed utilizou o rock para fazer o que Woody Allen realizara em filmes como Manhattan: esquadrinhou, com ternura e acidez, as esquinas e personagens da cidade-berço.

Em New York, Lou Reed também chega ao ápice em um estilo de escrever baseado na junção de descrições com frases curtas e diretas. “Sempre achei que minhas letras iam além do simples relato e faziam asserções emocionais, embora não morais”, comentou na abertura do livro 'Atravessar o fogo – 310 letras de Lou Reed' (Companhia das Letras, 2010), sem deixar de minimizar a sua atividade: “Certas vezes, escrever significou apenas seguir o ritmo e o som e inventar palavras sem sentido algum além da sensação que transmitiam”.

Em parceria com o galês John Cale, parceiro no Velvet Underground, Reed lançou outra obra-prima, o disco 'Songs for Drella' (1990), requiém para o artista e padrinho Andy Warhol, e ainda lançou álbuns respeitáveis como 'Set the twilight reeling' e 'Ecstasy'. Nos últimos anos, fez participações em músicas de bandas como The Killers, Gorillaz e Metric. Regravado por artistas tão díspares como Cowboy Junkies (Sweet Jane) e Marisa Monte (Pale blue eyes), era referência incontornável para boa parte dos músicos contemporâneos: “Ele é insubstituível”, decretou Lee Ranaldo, ex-guitarrista do Sonic Youth. “Eu te amava tanto”, revelou ontem Flea, baixista do Red Hot Chili Peppers.

Quis o destino que o derradeiro disco de Lou Reed tenha sido um fracasso de crítica e de vendas, o malfadado 'Lulu' (2011), gravado com o Metallica, um passo em falso de quem nunca temeu o risco de atravessar o fogo. E, por não ter medo de se arriscar, também alcançou momentos de rara beleza, como o disco conceitual 'Magic and Loss' (1992), dedicado a dois amigos que padeceram de câncer, inteirinho sobre a morte. “Há em tudo um tanto de magia. E então alguma perda pra igualar as coisas.” Um dos gigantes da música norte-americana, Lou Reed sai de cena. Deixa discípulos, não herdeiros. Como possível epitáfio, fica o aviso contido na letra de 'What’s good': A vida é boa, mas nem um pouco justa.