Fundadores do Vecchio Sogno relembram a abertura do restaurante

Casa que completa 20 anos na próxima semana estreou com 50 itens no cardápio, num Dia dos Namorados em que quase tudo deu errado na cozinha e no salão

por Eduardo Tristão Girão 04/06/2015 10:00
Tulio Santos/EM/D.A Press
Os chefs Memmo Biadi e Ivo Faria, que fundaram o Vecchio Sogno em 1995. Sociedade se desfez depois, e Faria hoje comanda a casa sozinho (foto: Tulio Santos/EM/D.A Press)
“Jamais vou me esquecer do Memmo de frente pro forno, olhando para o infinito. Falei assim pra ele: ‘Onde você foi se enfiar, hein?’. Ele respondeu com um sonoro palavrão, conta o chef Ivo Faria. Semana que vem, essa cena completará exatos 20 anos, mas ele se lembra dela como se fosse ontem, pois marcou a inauguração do Restaurante Vecchio Sogno, num conturbado Dia dos Namorados, fruto de sua parceria com o chef italiano Memmo Biadi – os dois eram sócios na época. Isso, aliás, ocorreu quando muitos belo-horizontinos bebiam o lendário vinho da garrafa azul e não sabiam o que era uma alcachofra. A gastronomia ainda engatinhava por aqui.


Referência sólida na capital mineira, o Vecchio Sogno teve um início meio complicado e com alguns imprevistos, a exemplo de tantas outras casas que abrem as portas. “Se você esperar tudo ficar prontinho pra abrir, nunca abrirá. Aliás, um restaurante nunca ficará redondinho. Se trabalhar no Dia dos Namorados já é passar aperto, imagine inaugurar nessa data, com cardápio aberto e 50 pratos que nunca haviam sido feitos antes. É muito atrevimento. A gente voava pela cozinha”, lembra Biadi.

Carnes queimaram, cozinheiros não sabiam bem como decorar os pratos, alguns pedidos levaram uma hora para chegar à mesa, vinhos foram entregues em cima da hora e o sommelier quase desistiu da profissão. “A equipe não falava a mesma língua. Ainda bem que a maioria daqueles clientes era conhecida nossa”, lembra Faria. Segundo ele, a casa passou a ter telhado de vidro em razão de sua proposta singular: cozinha italiana sofisticada, diferente do receituário clássico das cantinas. O público, ainda pouco familiarizado com aquele tipo de comida, não costumava poupar críticas.

“No segundo ano, um cliente da alta sociedade partiu um pedaço de alcachofra recheada e pôs na boca com as pétalas, que são a parte mais dura, que não se come. Ele meteu o pau no restaurante, ao vivo. Fomos explicar e ele reagiu, perguntando se queríamos ensiná-lo a comer”, revela Biadi. Faria se lembra de mais: “Um cliente chegou a ir embora por achar o cúmulo não termos Liebfraumilch na carta de vinhos. Aliás, na época, dizia-se que uísque era a bebida mais indicada para acompanhar uma refeição. Era a bebida mais vendida. Hoje, se vendo duas doses num dia é muito”.

A abertura do mercado brasileiro para itens importados era recente e a curiosidade do consumidor em torno de novos ingredientes, crescente. Para emplacar o novo restaurante, portanto, os dois chefs não confiaram apenas no próprio talento. Trouxeram surpresas do exterior. O Vecchio foi a primeira casa de BH a promover um festival de receitas com trufas, trazidas frescas da cidade italiana de San Miniato pelos sócios. “Compramos 1,2kg delas e nunca mais consegui iguais. Firmes, maravilhosas. Chegando aqui, vendemos tudo, o restaurante ficou lotado”, afirma Biadi.

No segundo e terceiro anos, a dupla criou festivais de cogumelos frescos importados da Europa, algo fora do comum na época. No cotidiano, a cozinha usava ingredientes vindos de fora, como radicchio, endívia, alface frisee, pato, pombo, bisteca de vitelo e costeleta de cordeiro – esta última, neozelandesa. O risoto, prato que permanece entre os preferidos do belo-horizontino, já era feito como se deve – com arroz italiano e bom caldo. O modelo foi o servido no restaurante paulistano Fasano, cuja cozinha era comandada pelo chef italiano Luciano Boseggia (que ficou conhecido no país como o “Rei do risoto”).

Boseggia virou amigo do Vecchio Sogno. Foi um dos vários chefs que passaram por lá para cozinhar em festivais brasileiros e estrangeiros, a exemplo de Sergio Arno, Tsuyoshhi Murakami, Jefferson Rueda, Paulo Martins, Flávia Quaresma, Cristian Bertol e Emmanuel Ruz. O próximo evento, marcado para dias 16 e 17 deste mês, terá como convidados Alberto Landgraf, Joca Pontes, Rafael Pires, Walter Dantas, Jonatas Moreira, Edney Adriano (chef-executivo do Vecchio) e Naiara Costa (filha de Ivo, à frente de sua segunda casa, o La Palma).

BOTIJÃO

Faria e Biadi se conheceram em meados dos anos 1970. “Tinha uma Caravan e ele, cabelo black power”, lembra o italiano. Um admirava o trabalho do outro, mas a amizade só começou quando Biadi precisou de um botijão de gás – emprestado por Faria, então cozinheiro no extinto Café São Jorge. O italiano, que na época comandava quatro restaurantes (só restou o Dona Derna), costumava fazer jantares particulares para colunáveis e passou a chamar o colega para ajudá-lo nessas empreitadas. “As receitas do filme A festa de Babette eram fichinha perto do que a gente fazia”, orgulha-se Memmo.

Era evidente a satisfação de criar, em dupla, pratos italianos incrementados. Nas cozinhas em que os dois trabalhavam não havia abertura para servir esse tipo de comida, mas a ideia do restaurante não foi de nenhum deles. Ela veio do jornalista Sérgio Augusto de Carvalho, que trabalhava na Assembleia Legislativa de Minas Gerais e frequentava o Dona Derna. “Sempre gostei de comida e vinho. Depois do expediente, a gente ia para o restaurante que existia no último andar da Assembleia para happy hour, mas ele era avacalhado e não tinha nada de especial. Era a hora de a casa ter algo melhor, como a Câmara dos Deputados”, diz Carvalho.

O nome de Biadi foi o primeiro que lhe veio à mente. “Uns deputados sugeriram amigos para tocar esse restaurante, mas disse para tirar isso da mão deles. Na época, todos os restaurantes do Memmo bombavam”, lembra. Quando recebeu o convite, o italiano inicialmente achou que era gozação, mas aceitou logo depois, acrescentando que chamaria Faria para dividir com ele a responsabilidade da empreitada. O projeto do arquiteto Álvaro Hardy, o Veveco, transformou em restaurante de luxo o espaço que o Legislativo usava para fins diversos, como garagem, correio e posto de saúde.

O italiano deixou a sociedade no restaurante em 2001 e não se arrepende de nada que fez por lá. “Chacoalhou bem a cidade esse Vecchio Sogno. Abrimos o horizonte do cliente”, diz Biadi. Com a missão solitária de manter a casa no mesmo patamar, Ivo se lançou ao desafio de acompanhar as evoluções do mercado sem descaracterizar completamente a proposta original. “Com o tempo, ou a gente evolui ou morre. Fico feliz quando vejo boa parte da minha clientela abaixo dos 35 anos. Já não sabemos quem são os clientes, como ocorria antigamente. Isso força mudanças, tanto que o próximo cardápio será mais moderno”, adianta Faria.

O primeiro cardápio

. Endívias com salmão e creme azedo
. Salada de centolla desfiada servida na casca
. Salada de endívia com queijo de cabra, pera e rúcula (servido até hoje)
. Braseado de cordeiro, linguiça e cogumelo seco envolvido em massa folhada com buquê de folhas
. Peito de pato ao molho de amarena com risoto de parmesão
. Ossobuco com risoto à milanesa
. Medalhão de filé ao molho de cogumelo seco com raviolini de ricota
. Risoto de camarão
. Parfait crocante de amêndoas

Leia mais no Blog do Girão: como será o menu do festival de 20 anos do Vecchio Sogno.
www.dzai.com.br/eduardogirao/blog/blogdogirao

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