A ancestralidade negra com toques futurísticos no afroculturismo

O afrofuturismo une símbolos da mitologia africana e da arte, ficção científica e tecnologia para exprimir desejo por uma realidade utópica sem deixar de lado a ancestralidade

Mário art/ Divulgação
(foto: Mário art/ Divulgação)
Uma junção de elementos tecnológicos e futuristas perpassados de ancestralidade e cultura negra é a temática central do afrofuturismo. Criado nos Estados Unidos pelo filósofo cósmico, músico e poeta Sun Ra na década de 1950, o movimento se popularizou no Brasil nos últimos anos. “O afrofuturismo é um movimento artístico, cultural e filosófico. A nomenclatura é um termo posterior a movimentação, mas quem traz a prática e entende isso é Sun Ra, que se inspirou nos antigos egípicios. É um movimento definido pelo continente e pelas diásporas. Essa busca pela experiência do passado, para trazer o presente e encontrar um caminho para o futuro”, afirma Aza Njeri, doutora em literaturas africanas, pós-doutora em filosofia africana, pesquisadora de África e afrodiáspora no que tange cultura, história, literatura, filosofia, teatro, artes e mulherismo africana.

O objetivo principal do movimento e da estética é colocar os negros como protagonistas das próprias narrativas a fim de valorizar a história ancestral desse povo através de uma perspectiva não branca. As influências do afrofuturismo são abrangentes e contemplam diversas vertentes das artes, como música, pintura, moda e cinema. “A importância da estética está no sentido de empoderamento cultural, é como se de alguma forma ele buscasse um recarrilamento civilizatório para a população negra e afrodescendente”, pontua a pesquisadora.

Apesar de antigo, nos últimos anos o movimento se popularizou no Brasil e no mundo. Segundo Aza, esse fator foi auxiliado pelo maior acesso à internet, às mídias sociais, ao streaming e, principalmente, pelo lançamento do filme Pantera Negra, que tem como narrativa a ancestralidade africana unida às tecnologias futuristas da nação fictícia do reino de Wakanda.

“O reflexo da realidade pela perspectiva do afrofuturismo tem uma relação com criar pontes para o futuro mais digno e humano, na plenitude solar da nossa própria humanidade. A perspectiva afrofuturista vai olhar o passado, para projetar práticas do presente que possibilitem um futuro. Isso quer dizer não apenas quebrar narrativas, mas produzir quebras de paradigmas semióticos que atrelam a nossa humanidade e a humanidade ocidental”, conta Aza.

Oberon Blenner

Desde criança, Oberon Blenner presenciava as manifestações artísticas do pai, que sempre foi amante das artes por meio de colagens, poesias e músicas. “Cresci rodeado de boas influências. Tanto de linguagem visual, como pintura, filmes e quadrinhos como também literatura e música”, lembra Oberon Blenner, que tem como técnica traços unidos ao digital.

Há dois anos, Oberon começou trabalhar com a estética afrofuturista, quando teve contato com as ideias do Sun Ra. “A ideia da diáspora negra até o Cosmos, o panafricanismo elevado até o futuro tecnológico e tudo mais me impactou bastante, pois percebi que tudo que eu vinha fazendo nos meus desenhos mais recentes tendia para essa estética, mesmo eu não sabendo que já existia esse conceito”, pontua o jovem.

“O Stan Lee por exemplo, em Pantera Negra já retratava uma Wakanda como metrópole negra superdesenvolvida tecnologicamente. Isso é maravilhoso quando se é um desenhista como eu, fã de quadrinhos, mangás e filmes de ficção científica, pois a cultura pop por muito tempo tem seguido uma fórmula e uma apresentação de narrativas que não representam as nossas narrativas enquanto negros, periféricos, entre outras”, declara.

Questões filosóficas, espirituais e sociais estão sempre presentes no trabalho de Oberon, as quais influenciam o processo criativo do artista que busca mitologias ancestrais, símbolos e formas mágicas da religião e da cultura em todas as civilizações para dar forma ao processo criativo caracterizado por cores fortes, hieróglifos, cabos, animais e máscaras totêmicas robóticas.

Xibi Rodrigues

Assim como muitas crianças, Xibi Rodrigues desenha desde a infância. Para ela, a estética criada por Sun Ra é importante para entender a temporalidade junto às linguagens artísticas no quesito de resgatar do passado ao mesmo tempo que se constrói o futuro. “A linguagem artística permite esse tipo de movimentação, principalmente, quando a gente está disputando a estética e a cultura, por que a nossa cultura sofre muito e é muito explorada do mesmo jeito que a nossas tradições culturais precisam ser mantidas”, pontua Xibi Rodrigues.


Por meio de muralismos, desenhos, pinturas, gravuras e tatuagens, as inspirações da artista estão ligadas a semiótica. “Utilizo o que eu vivo e percebo na minha realidade. A estética dos meus sonhos, a minha comunidade, o que me interessa visualmente, o que eu acho bonito, as cores que combinam com a pele negra, as peles negras, eu misturo todos os elementos para sair a minha inspiração”, destaca.

Com um trabalho focado em representações de figuras femininas, a moradora de São Sebastião busca ressignificar esses corpos. “É uma forma de reescrever e de me reapresentar. Quando eu pinto mulheres, é sobre nos reapresentar, é sobre mudar o costume que está dentro da história das artes visuais acerca das mulheres negras. Estou reescrevendo a nossa estética sobre os nossos próprios corpos, eu estou apresentando o nosso erotismo pelo nosso protagonismo, pela nossa própria voz, pela nossa visão, não pelo que eles nos veem”, ressalta.

.bros

Mário Miranda ou .bros, como é conhecido, se interessou pelo mundo das artes ao sentir necessidade de se expressar, muito antes de se entender como artista. Para ele, o afrofuturismo é um conceito que não integra totalmente a produção artística dele. “O afrofuturismo não vai falar de realidades específicas do povo negro e indígena brasileiros, por exemplo. Eu desdobro a minha produção para falar de questões coloniais, de questões sobre povos originários do Brasil. Esse termo não engloba identidades indígenas e meu trabalho também engloba essas identidades, que fazem parte da minha criação”, afirma o pernambucano.

As simbologias presentes no trabalho do artista estão pautadas na ancestralidade. “Se a gente parte da realidade de povos negros e indígenas no Brasil, a gente está falando de uma população que morre diariamente, ser afrofuturista me parece utópico dentro da própria realidade”, comenta.

“Sou um artista transmídia, o meu trabalho encontra atuação em diversas formas de expressões. A minha própria existência e a vida são minhas maiores fontes de inspiração, assim como minhas vivências e experiências artísticas. Tudo pode me servir de inspiração”, completa.

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