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DE LONGE

Sempre um Papo substitui cara a cara por transmissão virtual


Evento regular e tradicional no calendário literário de Belo Horizonte, o Sempre um Papo se adaptou à recomendação de distanciamento social, transformando o que eram encontros entre autores e seu público realizados em auditórios e teatros num cara a cara virtual, via YouTube e Facebook.



Desde 14 de maio, semanalmente, o jornalista e escritor Afonso Borges, idealizador do projeto, recebe personalidades do mundo das letras e da cultura em geral, cada um em sua casa, para um bate-papo on-line sobre literatura.

Na última terça-feira (23), os convidados foram o escritor amazonense radicado em São Paulo Milton Hatoum e o mineiro Carlos Herculano Lopes. O tema proposto para a discussão de aproximadamente 60 minutos era ''A vida como ela é/será''. Borges, o anfitrião, abriu os trabalhos com a pergunta: ''Como vocês estão se sentindo?''.

''Eu vivo numa espécie de clausura involuntária porque, antes, a clausura era apenas um modo de trabalhar'', disse Hatoum, confinado em casa desde o início da chegada da pandemia no novo coronavírus ao Brasil, em março passado.



''O Brasil, hoje, enfrenta dois agravantes: o vírus e uma inquietação geral com a situação do país. Acho que é normal a gente se sentir mais fragilizado nesses momentos, embora eu ainda consiga trabalhar e fazer as minhas coisas com certa normalidade. Acabo pensando muito na situação da maioria dos brasileiros, que, de fato,  está muito mais difícil. Para mim, depois da ditadura, esse é o momento mais triste e dramático da nossa história recente.''

Herculano, por sua vez, frisou o fato de que o número de mortes pela Covid-19 já se equipara ao da Guerra do Paraguai (1864-1870). Embora tenha saído vencedor, o país contabilizou ao menos 50 mil mortos, segundo os estudos mais recentes e detalhados. Na pandemia, esse número de vítimas foi atingido no último final de semana.

 ''É um momento muito difícil e inédito, de muita desesperança. Ficar em casa o tempo todo é ruim, mas a gente já entendeu que é o certo a fazer. Por outro lado, eu sinto uma inquietude muito grande. As pessoas precisam sobreviver, não conseguem ficar trancafiadas o tempo todo. É um paradoxo e uma oportunidade para a reflexão. Como escritor, tenho tentado produzir'', comentou o mineiro.



Hatoum estreou na ficção com Relato de um certo oriente (Companhia das Letras, 1989), vencedor do prêmio Jabuti de melhor romance do ano seguinte. Seu segundo romance, Dois irmãos (Companhia das Letras), de 2000, foi traduzido para 12 idiomas e adaptado para a televisão, teatro e quadrinhos.

TRILOGIA


Famoso por escrever a mão, acumulando pilhas de cadernos em seu escritório, ele também é autor de Cinzas do norte (2005), Órfãos do Eldorado (2008) e A cidade ilhada (2009) – todos pela Cia. das Letras. No ano passado, lançou Pontos de fuga, segundo volume da trilogia O lugar mais sombrio, que teve início com o romance A noite da espera (2017).

''A literatura caminha por linhas sinuosas. A reta não existe no percurso de um escritor'', comentou ele, quando convidado a discorrer sobre sua trajetória literária. ''Nos meus romances, o que tentei fazer foi inventar um microcosmo. Esse universo passa obrigatoriamente pelo drama familiar, que, no relato, está representado por uma casa que se desfaz. Depois, isso foi se espalhando para a cidade e para o país, quando começo a abordar questões urbanas e políticas.''



Radicado em Belo Horizonte, Carlos Herculano Lopes nasceu em Coluna, no Vale do Rio Doce, e é autor de vários livros, entre eles os romances Sombras de julho (1991), adaptado para o cinema em 1995. Também escreveu Poltrona 27 (2011), romance que foi transformado numa série de seis capítulos exibida pelo Canal Brasil. Jornalista, trabalhou como cronista e repórter do Estado de Minas.

''Minha literatura sempre foi muito intuitiva. Quando publiquei o meu primeiro livro de contos, tinha 22 anos. Foi durante um período politicamente difícil para o país. Depois disso, continuei escrevendo e meu primeiro romance, escrito em 1970, só foi publicado em 1980. Minha literatura nunca foi programada, assim como me tornei cronista sem querer, por acaso'', disse.

Muito embora o encontro fosse voltado para discutir literatura, a conversa rapidamente enveredou para o campo da política. Ao comentar sobre seus últimos trabalhos, Milton Hatoum frisou a importância de ser um escritor de seu próprio tempo, sem se desvincular do que está ocorrendo no presente.



''Sem dúvida, O lugar mais sombrio tem um vínculo com o que está acontecendo hoje. O que estamos vivendo é a continuação de uma coisa que não foi totalmente interrompida na ditadura militar (1964-1985). Esse autoritarismo bruto que retornou estava em banho-maria há muito tempo. Desde a Lei da Anistia, em 1979, perdemos uma chance histórica de enterrar esse entulho autoritário, essa predisposição fascistoide que existe em vários setores da sociedade brasileira e nas Forças Armadas.''

A trilogia retrata a iniciação sentimental, política e cultural de um grupo de jovens no Brasil dos anos 1960 e 1970. “Nosso país tem uma história muito bruta de opressão a negros e indígenas. A República, por exemplo, foi inaugurada com um genocídio, em Canudos. Portanto, essa brutalidade, representada hoje por Bolsonaro, sempre esteve presente. O Exército nunca foi isento ou respeitou as instituições democráticas, então sempre vivemos o fantasma de uma intervenção, como acontece hoje'', afirmou Hatoum.

Na opinião de Carlos Herculano Lopes, na América Latina, ''a democracia nunca está consolidada''. ''Por aqui, sempre há um ranço autoritário. Nas eleições de 2018, quando dei meu voto crítico a Fernando Haddad (então candidato à Presidência pelo PT) e publiquei sobre isso nas minhas redes sociais, a quantidade de mensagens agressivas que recebi foi impressionante. Bolsonaro não tem a postura de um estadista e não tem a capacidade para presidir um país grande como o nosso.''



DÚVIDA


''Não sei nem se ele é humano'', completou Hatoum. ''Essa é uma dúvida profunda. Porque as pessoas que querem eliminar o outro não são humanas. Quando ele diz que é preciso 'metralhar' a oposição, por exemplo, sabemos que não fala isso no sentido metafórico. Uma pessoa que elogia um torturador não tem nada de humana. E ele persevera na sua desumanidade.''

Questionado sobre o próximo livro, que encerrará a trilogia e ainda não teve sua data de lançamento divulgada, o escritor adiantou que algumas coisas presentes nos volumes anteriores serão esclarecidas e outras ficarão no âmbito do mistério. ''Agora na pandemia percebi que poderia escrever mais um volume, que pode ser lido independentemente dos outros livros'', disse.

''Cada dia que passa é um pequeno pedaço de liberdade que a gente está conquistando. Só espero que quando tudo isso passar as pessoas não parem de ler, escrever, falar com os amigos, falar de literatura. Isso é o que mais tem me comovido'', afirmou Hatoum.