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'Um erro pensar que as independências significaram o fim do colonialismo', afirma economista português

Qual o futuro da democracia? O sociólogo e economista português Boaventura de Sousa Santos, de 78 anos, afirma que para que tal pergunta seja feita é preciso fazer outra: a democracia tem futuro?.

Essa será uma das pautas da conferência “A crise da democracia”, que o professor da Universidade de Coimbra fará na tarde desta segunda-feira (11), no BDMG Cultural. Na mesa estarão presentes os professores da UFMG Heloísa Starling (história) e Leonardo Avritzer (ciência política).

Os conferencistas ainda lançam os livros Demodiversidade (Autêntica, coorganizado por Boaventura e José Manuel Mendes) e Pensando a democracia, a república e o estado de direito no Brasil (Autêntica, coorganizado por Starling e Avritzer)

Na entrevista a seguir, Boaventura defende modelos de democracia para além da liberal. Próximo do ex-presidente Lula, a quem visitou em 2018, em Curitiba, ele afirma que as esquerdas precisam olhar para o futuro “sabendo que será um futuro sem Lula da Silva”.

 O senhor afirma que a demodiversidade pode ser concebida como “a coexistência pacífica ou conflitual de diferentes modelos e práticas democráticas”. Como pensar a demodiversidade no Brasil de hoje?
Tenho usado o conceito de demodiversidade para veicular a ideia de que não há apenas um modelo de democracia, para além do modelo da democracia liberal. Aliás, hoje, operam outros modelos, ainda que sejam pouco visíveis. O Brasil tornou-se muito conhecido nos anos 1990 pela democracia participativa em nível municipal, os chamados orçamentos participativos. Depois, eles evoluíram para outras formas de consulta sistemática da sociedade civil. Em seus melhores momentos, ela (a democracia participativa) mostrou que era uma complementaridade essencial da democracia representativa liberal.
Portanto, houve a convivência de duas formas de democracia. Sobretudo desde os anos 1980, pensa-se que a democracia representativa é a única. Penso que pela situação atual dos nossos países a democracia liberal deve ser protegida, fortalecida, mas penso que, sozinha, e só por si, ela não conseguirá se defender dos antidemocratas. Provavelmente, caminhamos para uma luta democrática para a articulação entre diferentes formas de democracia. Isso será uma versão possível da demodiversidade.

É possível que exista uma democracia plena em um sistema capitalista globalizado e neoliberal?
Pelo contrário. Penso que o sistema capitalista como está sendo organizado – sob domínio total do capital financeiro globalizado e autorregulado, entregue a uma lógica de produção e riqueza a todo custo – é incompatível com a democracia. Estamos assistindo a algo preocupante, que é o desfigurar da democracia através dos modelos de eleições para a Presidência de vários países de personalidades que mostram desprezo total pelos processos democráticos e que se afirmam como populistas de direita.
Até os anos 1980, era a democracia que regulava o capitalismo em muitos países democráticos. A partir dos 1980, houve alteração profunda no sistema e o capitalismo passou a regular democracia. Portanto, é a necessidade de acumulação de capital que vai determinar até onde vai funcionar a democracia. Penso que por vezes se possa afirmar que as democracias estão morrendo democraticamente. Os processos democráticos estão de tal maneira desfigurados que os antidemocráticos, os apologistas da tortura e da ditadura, chegam ao poder pela via democrática. Fundamentalmente, houve, no momento em que o capitalismo começou a regular a democracia, a contaminação do dinheiro nos processos eleitorais. Eles passaram a ser manipulados por fake news, campanhas foram financiadas fora de qualquer controle público. Ou seja, os processos tornaram-se incertos para que o resultado seja certo.
Isto é, para que seja eleito o candidato preferido pelo grupo financeiramente mais poderoso.

Como o senhor pensa a democracia para o futuro?
Para isso há que se saber se a democracia tem futuro. Porque se ela continuar repetindo o que tem sido o processo democrático em muitos países, provavelmente ela não tem futuro. Para ter futuro, ela tem que ser pensada. Não podemos aceitar que a atual ordem capitalista seja o fim de toda a história. Vivemos em uma sociedade não apenas capitalista, mas colonialista. Foi um erro pensar que as independências significaram o fim do colonialismo, que continuou sob outras formas, como preconceito racial, grande concentração de terras, que continuam a discriminar populações e territórios. Vivemos em uma sociedade heteropatriarcal. É outra forma de dominação que se articula com o capitalismo e o colonialismo: a ideia de que mulheres ou certas orientações sexuais devem ser discriminadas porque são inferiores ou porque não são aceitas por uma ortodoxia ideológica, seja ela religiosa, seja ela de outro tipo. Os processos democráticos não podem se limitar ao que chamamos sistema político. É preciso democratizar as relações entre as diferentes culturas, reconhecer a diversidade e a diferença sem hierarquias.
São tarefas imensas, mas são elas que dão as condições da democracia do futuro, isto é, uma democracia que tem futuro.

Em entrevista ao jornal português Público concedida após a eleição de Jair Bolsonaro, o senhor afirmou que “se as forças se concentrarem exclusivamente no slogan ‘Lula livre’, é uma luta em relação ao passado”. Qual seria outra opção para as esquerdas na atual conjuntura?
Afirmei ao jornal português que a luta por “Lula livre” era um luta que se referia ao passado e ao presente deste país, mas que não podia resumir toda a luta que a esquerda tem que travar. O “Lula livre” é uma tarefa cada vez mais importante, e deve continuar a ser forte em todas as esquerdas do Brasil, precisamente porque ele foi um grande presidente que está sujeito a um sacrifício injusto. A sentença de condenação que lhe foi atribuída significa que as elites brasileiras querem que Lula da Silva morra na prisão, uma situação repugnante. Portanto, o “Lula livre” é a luta das esquerdas, só que não pode ser toda a luta das esquerdas. É preciso fazer uma autocrítica. Houve muitos erros, uma demasiada promiscuidade entre o poder político e o poder econômico, a corrupção foi endêmica e agravou-se nos últimos anos. É preciso uma reforma política, uma reforma fiscal, uma reforma territorial, tudo isso não foi feito naquela altura e que poderia ter sido feito. É preciso olhar para o futuro sabendo que será um futuro sem Lula da Silva. Há a necessidade de pensar também uma esquerda que não siga muitas das políticas que foram seguidas no período de Lula da Silva e que hoje reconhecemos que foram um erro.
O modelo econômico, por exemplo, da extração de recursos naturais praticamente sem limites, não é uma invenção do atual governo. Há que ter outras estratégias, outros horizontes, e isso não envolve nada de negativo em relação a Lula da Silva. Ele teve seu momento, sua história. O futuro agora é outra coisa, pertence às novas gerações de políticos.

O que o preocupa no governo Bolsonaro?
A própria sobrevivência democrática do país. Há no horizonte uma instabilidade política no próprio governo, em que temos uma mistura dos governantes civis e militares dentro de um governo civil. Em segundo lugar, uma política de revanchismo político. O sistema tem uma ala de extrema-direita que está a apostar em criar aquilo que chamo de democracia branca, uma democracia sem os vermelhos, truncada, violenta. Preocupa-me também uma política de educação completamente arbitrária e contrária a tudo aquilo que se começou a fazer nos últimos 15 anos. Mas o que me preocupa mais não está nas notícias, é a agressão cada vez maior às populações indígenas e camponesas dos grandes latifúndios, com a invasão sistemática e ilegal de terras demarcadas, e o desmatamento da floresta. Por outro lado, as medidas econômicas e outras que virão com a privatização da Previdência, com a venda dos recursos naturais ao capitalismo internacional, e que tornam impossível qualquer política um pouco autônoma que se poderia ter pensado. É o lucro, nada mais, e nem sequer o lucro é para empresas brasileiras, mas para empresas norte-americanas e europeias. É a continuação do capitalismo colonialista de grande tradição em um país como o Brasil.

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