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Artistas mineiros comentam polêmica envolvendo Fabiana Cozza

A cantora teria sido uma escolha da própria Dona Ivone Lara (esq) - Foto: Reprodução/InstagramOutra polêmica envolvendo os negros chama a atenção do país, depois da denúncia de que a novela Segundo sol, exibida pela Globo, deu papéis principais a atores brancos, apesar de se passar na Bahia, onde a maioria da população é afrodescendente. Domingo, a cantora Fabiana Cozza anunciou a desistência de interpretar Dona Ivone Lara (1921-2018) no musical que retrata a trajetória da compositora, previsto para estrear em setembro. Filha de um negro – Osvaldo Santos, puxador da escola de samba paulista Camisa Verde e Branco –, Fabiana sofreu ataques nas redes sociais depois de militantes do movimento negro a considerarem “branca demais para o papel”.

“Não é sobre talento, é sobre respeitar a biografia de uma pessoa que foi o que foi, inclusive por ter a pele escura, coisa que Fabiana, não tem”, postou o site Mundo Negro. A página Inspiração Negra registrou: “Se não reclamar do colorismo (termo que relaciona a quantidade de melanina de uma pessoa com o racismo que ela sofre)... O próximo passo é o whitewhasing (embraquecimento)”.

Em carta aberta, Fabiana explica ter renunciado ao papel “porque falar de racismo no Brasil virou papo de gente ‘politicamente correta’”. E lamenta: “Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, e acordar ‘branca’ aos olhos de tantos irmãos”.

Ontem, o neto de Ivone Lara, o sambista André Lara, lamentou a desistência da cantora, em entrevista a O Globo. “Chegamos à conclusão, inclusive aprovada pela minha ‘vó’ em vida, que a artista mais próxima seria ela, a Fabiana. Consideramos ela negra, e sabemos que existem muitas outras artistas competentes para atuar. Porém, a pessoa que teve uma vivência maior com minha ‘vó’, participou com ela de inúmeros shows, frequentou várias vezes a casa de nossa família foi Fabiana.
E esse laço afetivo fez a diferença”, destacou André.

CONVERSA

Em Minas, o “caso Fabiana Cozza” preocupa artistas negros. Amigo e parceiro da cantora, o compositor Sérgio Pererê revela que a polêmica lhe tirou o sono. O cantor e multi-instrumentista conversou com Fabiana antes de ela desistir do papel – para ele, uma atitude sensata e sábia.

“Nem quis me posicionar muito na internet para não inflar mais. Simplesmente postei um vídeo meu com ela para mostrar a minha solidariedade, já que somos amigos”, diz Pererê. De acordo com ele, o tema é complexo. “Não se trata de uma faca de dois gumes, mas uma faca de cinco pontas”, compara. “De qualquer ângulo que você olhar, ela vai te cortar.”

“Não é simplesmente dizer sou contra ou a favor.
Não dá para desmerecer nenhuma das partes”, defende Pererê, observando que, de maneira geral, as pessoas se posicionam em relação a temas dessa natureza sem considerar sua complexidade. “É uma realidade do nosso tempo, infelizmente. É necessário primeiro ter intimidade com o assunto para depois ter alguma propriedade para falar sobre ele”, reforça.

 

 

Na opinião do rapper e jornalista Roger Deff, trata-se de uma discussão ampla, que deve ser tratada como tal. Historicamente, não é novidade a mulher negra ter menos espaço na sociedade, e isso também vale para a cultura, argumenta. Na opinião dele, Fabiana é a pessoa indicada para o papel de Ivone Lara, não só por se tratar da escolha da própria família da sambista, mas devido à trajetória da cantora, militante do movimento negro.

“Quando se trata de uma negra retinta (com a pele mais escura), a questão se complica. É como se os negros de pele clara fossem mais aceitáveis, algo que está enraizado no racismo brasileiro”, observa Deff. “Fabiana é uma negra de pele clara que sempre se declarou negra. Tem história ligada a movimentos afro, uma história ligada ao samba e à própria Dona Ivone.

A discussão é importante, mas acho que ela não agrega, enfraquecendo a comunidade negra de uma maneira geral”, frisa.

Roger Deff defende a cantora como a protagonista do musical. “Fabiana Cozza é negra. Não é a quantidade de melanina que vai determinar a negritude dela. Na carta, ela disse uma frase muito importante: ‘O racismo se agiganta quando transferimos a guerra para dentro do nosso terreiro’. Isso é muito simbólico, um momento de aprendizado. Espero que a gente amadureça com essas questões”, opina.

COLORISMO

Black Josie, única DJ negra residente de uma casa de shows em BH, acredita que a polêmica trouxe um tema importante a público: o colorismo. Ao mesmo tempo, reconhece a importância de Fabiana Cozza e sua ligação com o samba e os movimentos negros. No entanto, não tira a razão de quem questionou a indicação da cantora ao musical.

“Não é tão simples analisar isso. A arte permite essas liberdades, mas se fosse um espetáculo sobre a Leila Diniz e a atriz fosse negra, eu não deixaria de assistir, mas talvez questionasse. Há muitas atrizes negras de cor retinta que poderiam representar a Dona Ivone Lara muito bem”, argumenta.

Josie diz que a cantora adotou uma atitude corajosa ao desistir. No entanto, pondera: “O colorismo está aí.
Essa questão tem que ser debatida.
Tudo que enfrento todos os dias, a negra retinta enfrenta muito mais. Então, o questionamento tem razão de ser, mas sou contra linchamentos virtuais, seja de quem for ou por que razão for. A abordagem não pode ser agressiva. Queria ressaltar: questionar isso (a escolha de Fabiana) não é ser racista, não é ser radical. Mas chamar para o debate”, afirma.

A União de Negras e Negros (Uninegro), em nota, deu apoio à cantora, dizendo que o fenótipo da pele de Fabiana é diferente de Dona Ivone Lara, “mas não menos negra”. A entidade questiona: “Até quando a casa grande vai nos separar? Até quando seremos jogados uns contra os outros pela questão do fenótipo? Até quando vamos nos autoboicotar? (...) É fundamentalmente importante deixar bem escuro nossa posição acerca do protagonismo de termos mulheres negras de pele escura ocupando os espaços, não apenas em espetáculos, como em todos os espaços onde a presença negra ainda é muito tímida. Por outro lado, isso não nos permite cair nas armadilhas da criminalização da negra de pele clara”, argumenta a Uninegro.

Mais POLÊMICAS

2018

JUNHO
>> Militante do movimento negro, a compositora e deputada estadual paulista Leci Brandão protesta depois de o cantor Cesar Menotti afirmar que “samba é música de bandido” no Altas horas, exibido pela TV Globo no sábado passado. Domingo, em vídeo postado nas redes sociais, Menotti pediu desculpas.

MAIO
>> Nos Estados Unidos, a rede ABC cancela a série protagonizada pela comediante Roseanne Barr, que comparou Valerie Jarrett, assessora do ex-presidente americano Barack Obama, aos animais do filme Planeta dos macacos.

>> A União de Negros pela Igualdade (Unegro Brasil) ajuiza ação civil pública contra a TV Globo na 2ª Vara Especial da Fazenda Pública em Salvador, na Bahia. Para a entidade, o elenco da novela Segundo sol, preponderantemente branco, não representa a sociedade baiana. A trama se passa na capital soteropolitana, onde 85% da população é negra, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD).

2017

DEZEMBRO
>> O jornalista William Waack é demitido da TV Globo devido ao vídeo “vazado” na internet em que faz piada ofensiva aos negros.
A cena foi gravada no intervalo de um programa em Washington, nos Estados Unidos.

SETEMBRO
>> Em debate depois da exibição do longa Vazante, no Festival de Cinema de Brasília, a diretora Daniela Thomas é acusada por negros de adotar ponto de vista “branco e conformista” diante da questão racial no Brasil. O filme aborda a relação de senhores e escravos em Minas Gerais no século 19.

FEVEREIRO
>> O jovem ator JP Rufino, de 15 anos, aciona a Justiça por ter sido chamado de “macaco” nas redes sociais ao participar das transmissões de um desfile da Mangueira, no Rio de Janeiro.

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