Festival de História de Diamantina começa com o desafio de contar o tempo presente

Evento dá início hoje à sua quarta edição que terá convidados nacionais e estrangeiros com foco nas reviravoltas dos tempos atuais

por Ana Clara Brant 04/10/2017 08:30

Quem nunca teve a sensação de que o mundo está bem acelerado e o tempo, passando cada vez mais depressa? Foi pensando nessa aceleração que os organizadores do Festival de História de Diamantina (fHist) escolheram o tema de sua quarta edição, que começa nesta quarta-feira, 04. História a quente pretende proporcionar ao público uma jornada de debates e vivências que unem referências históricas aos tempos cada vez mais velozes do século 21, com suas reviravoltas políticas e culturais.

''Vamos contar a história do tempo presente, que é um assunto cada vez mais usual na historiografia – e não só brasileira, mas mundial'', diz o jornalista Américo Antunes, que faz parte da coordenação do festival. Ele observa que a velocidade de difusão da informação por meio da internet tem tornado nossa percepção sobre o tempo muito fugaz e que por isso os historiadores se veem diante de um novo momento. ''Algumas mesas vão abordar essa fase, caso de 'História do tempo presente', que contará com as presenças de Ernesto Bohoslavsky, historiador e professor da Universidad Nacional de General Sarmiento (Argentina), Gabriela Aguila, historiadora e professora da Universidad Nacional de Rosário, também na Argentina, e Rodrigo Patto Sá Motta, historiador e professor da UFMG'', cita Antunes.

A abertura vai homenagear uma das figuras diamantinenses mais emblemáticas. A mesa ''Chicas da Silva, fatos e mitos'', comandada pela atriz e cantora Zezé Motta, que interpretou a famosa personagem no filme de Cacá Diegues, de 1976, terá participação da pesquisadora e escritora cearense Ana Miranda, autora da mais recente biografia de escrava que virou rainha, Xica da Silva: A Cinderela negra (Record).

''Um aspecto importante desta edição é que teremos mesas que vão contar com a presença de alguém que viveu ou tem uma relação íntima com o tema abordado e um especialista. É um equilíbrio interessante. Na mesa que vai tratar do samba teremos o jornalista e escritor Lira Neto, autor da Trilogia do samba, e o Mestre Conga, compositor e sambista, que, inclusive, vai dar uma canja. Já na que vai abordar o feminismo, ''Nossa luta faz história'', teremos a Carolina Ramkrapes, historiadora e professora da rede pública de São Paulo, e Macaé Evaristo, professora e secretária de Educação de Minas Gerais'', informa.

O coordenar destaca também que esta edição vai focar na cultura popular, seja na oferta de oficinas como ''Tropeirança, ressignificando raízes e memórias tropeiras'', com o sociólogo e pesquisador da cultura tropeira Ricardo Evangelista; seja em debates com temas como ''Cultura popular, palavras e verbetes'', que terá a presença do frade holandês Franciscus Henricus van der Poel, o Frei Chico, filósofo, escritor e pesquisador da cultura popular do Vale do Jequitinhonha. Ou ainda nas rodas de prosa, uma das novidades do fHist. Uma delas será sobre o cordel e terá como convidado Téo Azevedo, vencedor do Grammy Latino 2013 e mestre da cultura popular, que vai falar sobre música, prosa e a força da literatura de cordel e do repente no Norte de Minas e no Brasil.

PATRIMÔNIO  Uma mesa com o secretário estadual de Cultura, Angelo Oswaldo, a museóloga e superintendente do Iphan em Minas, Célia Corsino, a secretária municipal de Cultura, Turismo e Patrimônio de Diamantina, Márcia Betânia de Oliveira Horta, e o mestre João, de Capoeira Angola, vai celebrar os 80 anos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O encerramento do Festival de História, no sábado, 07, terá o ator Paulo Betti apresentando o seu mais recente trabalho, a peça Autobiografia autorizada.

''É uma edição mais concentrada, justamente por conta do momento de crise que estamos atravessando. Mas teremos nove mesas de debates, dois minicursos, oficinas, feira de livros, prosas com autores e manifestações artísticas com a presença de Titane, Túlio Mourão e consagrados mestres da capoeira e do samba de raiz. É uma programação mais enxuta, mas bem atrativa'', assegura Américo Antunes.


Quatro perguntas para... Rodrigo Patto Sá Motta, historiador e professor da UFMG


Quais são os principais desafios para os historiadores que se dispõem a escrever a ''história a quente'' com essa profusão cada vez maior de informações?

O desafio é tentar contribuir para o entendimento do processo que estamos vivendo, uma das piores crises da história do Brasil. Tão grave que nos leva a colocar em segundo plano definições profissionais rígidas e a correr riscos. Tradicionalmente, compreende-se que historiadores deveriam restringir-se ao estudo do passado. No entanto, passado e presente estão interconectados, e o conhecimento da história pode contribuir muito para a interpretação dos processos atuais, já que certos problemas são arraigados e preexistentes.

O tema de sua mesa será ''História do tempo presente''. Como analisa essa história do tempo presente?


Essa é uma das expressões que utilizamos para definir a história próxima de nós no tempo, mais recente. A história do tempo presente, ou a história recente, significa estudar processos e eventos que nós mesmos vivemos ou para os quais ainda existem testemunhas. Pode-se dizer que é uma história “quente” por sua maior proximidade conosco e por mexer de maneira mais forte com nossas paixões e interesses. O que torna mais difícil preservar a objetividade necessária à pesquisa, um compromisso indispensável para o historiador.

O senhor tem alguns artigos e livros sobre o golpe militar de 1964. Consegue traçar algum paralelo entre aquele período com o que estamos vivendo?


Há várias semelhanças, mas também diferenças, já que a história não se repete. Mas é importante pensar nas semelhanças que, por vezes, são assustadoras pelos desdobramentos que podem gerar. As semelhanças entre hoje e 1964 devem-se ao caráter estrutural de certos conflitos e de certos valores políticos, que fazem parte da nossa cultura. Destaco em especial a polarização esquerda/direita, com muitos grupos se apropriando de temas dos anos 1960 (''nossa bandeira jamais será vermelha''; ''vai para Cuba''; a defesa da moralidade cristã; ''abaixo o imperialismo'' etc.); a crise entre os poderes, naquela época especialmente entre o Executivo e o Legislativo; a crise econômica; o papel da mídia na desestabilização de governos considerados inconvenientes.

O senhor acha que o Brasil está vivendo um retrocesso com uma onda de radicalização conservadora ou há um avanço na democracia?


O que está acontecendo hoje mostra que nunca fomos uma democracia. No máximo, tivemos instituições liberal-democráticas, que, embora ainda em vigor, estão periclitando. Basta pensar nos pronunciamentos militares recentes e na perda de prestígio das instituições democráticas (captada em pesquisas de opinião). O quadro é propício para uma nova intervenção militar. O que começou como uma campanha contra a corrupção (que, em parte, acobertava planos de desestabilizar o governo no poder), acabou gerando a virtual destruição do sistema político e dos partidos. A extensão da crise atingiu o Judiciário, até então o poder mais prestigiado da República, agora imerso em escândalos e denunciado por ações ilegais ou abusivas. A destituição da presidente – do modo como se passou – desestabilizou toda a República, pior ainda porque se trata de um país com frágil cidadania. Devido à crise das instituições, muita gente pensa que os militares serão a salvação. Esquecem-se de que o discurso em 1964 foi o mesmo, defendia-se uma intervenção rápida, mas os militares ficaram no poder 20 anos. Com o fim da ditadura, herdamos uma crise enorme, social e econômica, para não falar no prejuízo político. Não é um horizonte alentador, melhor encontrarmos uma saída política, que respeite a Constituição e restabeleça as instituições desta combalida República.

 

4º Festival de História (fHist)

De quarta (4/10) a sábado (7/10), em Diamantina. Palestras, debates, oficinas, lançamentos de livros e espetáculos musicais e teatrais. Inscrições pelo site www.fhist.com.br. Ingressos: R$ 30 (estudantes), R$ 60 (professores) e R$ 100 (outros públicos), com direito a todas as mesas, conferências e apresentações culturais. 

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