Obras resgatam o passado feminista e falam dos primórdios da luta das mulheres

Obra percursora do gênero data de 1792

14/05/2016 10:28
Reprodução Internet
A escritora inglesa Mary Wollstonecraft, autora de Reivindicação dos direitos da mulher, obra precursora do gênero (foto: Reprodução Internet)
Diante do anúncio do novo ministério brasileiro, em que não há uma única mulher, da extinção da pasta das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, a questão do feminismo volta à berlinda e a luta por igualdade deverá ocupar outros espaços. As redes sociais e movimentos que se articulam fora as instituições, porém, devem fazer barulho e encontrar outras formas de mobilização e ativismo. A luta pela igualdade de gênero é bastante antiga e dois lançamentos recentes mostram um pouco dessa trajetória. Considerado o documento fundador do feminismo, Reivindicação dos direitos da mulher, da crítica literária e tradutora inglesa Mary Wollstonecraft, foi publicado em 1792. A Boitempo o relança com edição crítica. A obra exerceu forte influência no nascimento do movimento feminista brasileiro. Ao longo do século 19, surgiram pelo menos 143 publicações no país voltadas para mulheres, de acordo com um levantamento feito por Constância Lima Duarte, professora da Faculdade de Letras da UFMG, que lança também agora o dicionário ilustrado Imprensa feminina e feminista no Brasil %u2013 Século XIX, pela Editora Autêntica. A principal bandeira de Mary Wollstonecraft, encampada pelas brasileiras, foi o direito à educação. Na época, as mulheres eram preparadas apenas para tarefas do lar (e para serem recatadas, claro). A trajetória pessoal da ativista inglesa explica seu interesse pelo tema. Mary deixou a casa do pai aos 19 anos e passou a se sustentar como acompanhante de uma viúva. Em 1774, junto com a irmã Eliza, fundou uma escola numa comunidade ao Norte de Londres, onde havia forte presença de dissidentes políticos e religiosos. É essa experiência que leva Mary a escrever seu primeiro panfleto sobre a a educação das mulheres. Ivania Motta, tradutora da obra e autora de uma dissertação de mestrado sobre a ativista, explica que %u201Cela trilhou um dos poucos caminhos possíveis a uma mulher de sua época para conseguir espaço como intelectual. Teve formação incipiente e, depois, educou-se de modo autodidata%u201D. Ivania diz que o contexto da Inglaterra é especialmente relevante para a produção intelectual: %u201CEm plena Revolução Industrial e sob o impacto tremendo da Revolução Francesa, desenvolveu-se o mais intenso e polêmico debate ideológico jamais havido sobre o caráter e a natureza das instituições políticas.%u201D Em 1788, Mary começou a colaborar com a recém-lançada revista Analytical Review. É esta publicação que lhe dá acesso à vanguarda artística e intelectual da Inglaterra, incluindo Thomas Payne, William Blake e Henry Fuseli. Nos anos seguintes, ela mantém vários relacionamentos amorosos %u2013 indo contra a moral sexista e conservadora da época %u2013 e chega a viajar para a França para acompanhar de perto os desdobramentos da revolução no país. %u201CQuando publicou Reivindicação dos direitos da mulher, ela já era conhecida pela obra que escrevera em defesa de (Richard) Price e da Revolução Francesa, um marco de sua passagem de autora sobre educação de moças e crianças, campo essencialmente feminino e doméstico, para pensadora do debate político, reduto eminentemente público e masculino. Wollstonecraft não foi a primeira mulher a escrever sobre os direitos das mulheres. Mas foi quem usou o tom certo no momento propício%u201D, diz Ivania. A autora que viveu uma vida completamente fora dos padrões de seu tempo teve um fim trágico. Em 1796, aos 38 anos, Mary morreu no parto da sua segunda filha, fruto do relacionamento com o jornalista e filósofo inglês William Godwin. A menina, batizada Mary Wollstonecraft Godwin, ficaria famosa décadas mais tarde sob o nome de Mary Shelley, a autora de Frankenstein. NO BRASIL As ideias feministas vocalizadas pela crítica inglesa desembarcaram por aqui nas primeiras décadas do século 19. A primeira publicação dedicada às mulheres é O Espelho Diamantino, criada pelo jornalista francês Pierre Plancher em 1827, no mesmo ano em que a Coroa autoriza a abertura de escolas para meninas nas cidades mais populosas do país. Em editorial publicado no primeiro número, Plancher faz uma defesa enfática da educação das mulheres. A professora Constância Lima Duarte, professora da UFMG responsável pela extensa pesquisa que deu origem ao dicionário, conta que, %u201Cse em 1827 temos um jornal feito por um homem para mulheres, em 1831 já há mulheres fazendo jornais. Rapidamente, as primeiras escritoras começaram a escrever para outras mulheres%u201D, explica. Constância relata que o primeiro censo brasileiro, realizado em 1872, mostrava que 84% da população era analfabeta. %u201CApenas uma minoria, a elite da elite, lia e escrevia. A classe média só começaria a ter acesso à educação no século 20. Houve uma campanha de alfabetização, mas as meninas foram as últimas a entrar na escola. Os próprios pais eram relutantes em permitir que fossem informadas e educadas para pensar pensar por si.%u201D Ao pesquisar as primeiras escritoras brasileiras, a professora se deparou com os jornais em que elas publicavam. Para ela, esses periódicos são %u201Cpáginas da história da mulher brasileira%u201D. Foi a partir daí que ela decidiu fazer o levantamento, chegando às 143 publicações listadas no dicionário. Ela revirou arquivos de Norte a Sul do Brasil. E acredita que o número de jornais e revistas que circularam no século 19 foi ainda maior, pois é possível que muitos tenham desaparecido sem deixar registros. No livro, cada publicação conta com um verbete e a indicação do arquivo onde pode ser encontrada. Algo de extrema valia para pesquisas futuras. Constância dividiu os periódicos em dois grupos: os femininos e os feministas. Os primeiros abordavam os deveres das mulheres, como suas obrigações com o lar. Já os segundos reivindicavam direitos. No entanto, as fronteiras entre ambos eram tênues e se cruzaram nas páginas do mesmo jornal. %u201CNão privilegiei os (jornais e revistas) feministas porque a história da mulher é tudo isso junto e misturado. A história do feminismo não andou numa só direção, teve idas e vindas, avanços e recuos. Às vezes, na mesma página de um jornal, havia um artigo extremamente de vanguarda, falando das conquistas da mulher na Europa e nos EUA, e outro que reitera a passividade, o comodismo. Houve mulheres extremamente conservadoras e homens feministas%u201D, defende. A professora observou um crescimento das publicações feministas nas décadas de 1860, 1870 e 1880. Um movimento que segue a própria luta das mulheres pelo direito à escolarização. %u201CPrimeiro vem a luta pela escola primária, 20 anos depois, passa-se a pleitear o ensino secundário e depois a universidade. Em 1879, o imperador abriu o ensino superior para mulheres. São os ares europeus chegando ao Brasil%u201D, aponta a professora, que agora trabalha num dicionário de periódicos femininos e feministas do século 20. Para ela, %u201Cé comum pensarem que a luta começou nos anos 1970, mas é bem mais antiga. Agora, por que essa luta desapareceu por tanto tempo? Houve resistência ao feminismo e isso é visível na imprensa do século 20, em que predomina preconceito e há a cristalização da imagem negativa da feminista%u201D. (Com agências)
Reivindicação dos direitos da mulher De Mary Wollstonecraft Tradução de Ivania Motta Boitempo . 256 págs. . R$ 53
Imprensa feminina e feminista no Brasil %u2014 século XIX De Constância Lima Duarte Autêntica . 416 págs. . R$ 37

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