Matheus Nachtergaele encena poemas escritos pela mãe e enfrenta o tabu do suicídio

Ator se apresenta com 'Processo de cons(c)erto do desejo', em Tiradentes

por Carolina Braga 05/05/2016 08:00
Leo Aversa/divulgação
(foto: Leo Aversa/divulgação)
Matheus Nachtergaele não se cansa de repetir: o teatro é o primo rebelde das religiões. Se é assim, ele será protagonista do monólogo que será apresentado na Matriz de Santo Antônio durante o 4º Tiradentes em Cena, realizado na cidade histórica mineira. Em Processo de cons(c)erto do desejo, o ator interpreta poemas escritos pela mãe, Maria Cecília.

Mais que a encenação, a palavra – em forma de poesia – é o destaque do Tiradentes em Cena. O festival começa hoje com homenagem a Nathalia Timberg, no Largo das Forras. A atriz abre a maratona com o solo Paixão, que alinhava poemas de Adélia Prado, Bocage, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Camões, Manuel Bandeira e Florbela Espanca. No encerramento, dia 14, será a vez de Nachtergaele.

Morador esporádico do interior do estado há cerca de 10 anos, Matheus chegará a Tiradentes com saudades dos 12 cachorros que mantém em sua casa mineira, além da “ansiedade além da conta”. Foi lá que, em 2014, ele recebeu o convite para dirigir o grupo amador Entre & Vista, o que reacendeu seu desejo de voltar aos palcos. Com os artistas de Tiradentes ele montou O país do desejo do coração, do poeta irlandês William Butler Yeats. “Reencantei-me com o palco”, conta.

Esse reencontro gerou novos convites, entre eles o do Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana, à procura de trabalhos inéditos. Ex-integrante do Grupo Teatro da Vertigem, Matheus vivia um momento dedicado no cinema e na televisão. “Não tinha nada, a não ser tudo”, diz, ao explicar poeticamente a gênese de Processo de cons(c)erto do desejo.

O ator perdeu a mãe quando tinha três meses. Até completar 14 anos, não sabia a causa da morte de Maria Cecília, em 1968, aos 22 anos. Quando chegou à adolescência, o pai o chamou para um papo sério. “O suicídio é um tabu, tem muitas questões envolvidas. Criança, não pude saber. Por isso ele esperou essa idade simbólica”, explica. Um dia depois da notícia, Matheus ganhou de presente os 30 poemas escritos pela mãe, que se transformaram na dramaturgia da peça.

O ator guardou os versos por 30 anos. Esperava publicá-los ou, quem sabe, transformá-los em monólogo para uma atriz. Quando lhe perguntaram se não teria algo inédito para oferecer ao público, teve uma ideia. “Pensei: posso declamar esses poemas”, lembra. Convidou o violonista Luã Belik, o violinista Henrique Rohrmann e encarou o palco. Logo percebeu: as palavras da mãe tocavam mais fundo do que poderia supor.

Processo de cons(c)erto do desejo tomou forma depois disso. Ganhou temporadas no Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba, entre outras cidades. “As pessoas consideram muito corajoso, mas a ideia é muito simples. Não sei dos caminhos do destino, mas, como ator, me tornei um bom arauto para aquelas palavras”, comenta.

Maria Cecília fala de amor, ternura e feminismo. Matheus vê naqueles versos humor e melancolia. Por mais que se apresente para plateias variadas, ainda não tem a dimensão total do que provoca no público. “Concebi o espetáculo, exponho minha orfandade e homenageio minha mãe suicida. Os elementos são quentes. Precisei esperar anos. Foi muita psicanálise até conseguir fazer traquilamente”, reconhece. Hoje, diz conseguir lidar com Processo de cons(c)erto do desejo apenas como uma peça de teatro.

O espetáculo significa um concerto para o público e um conserto para Matheus. “Vou deslocando o meu desejo, saindo da queixa do órfão para uma celebração. Transformar o que era dor em poema”, resume. A simplicidade é o ponto forte da montagem. Ele próprio se dirige, depois de chegar à conclusão de que deveria assumir sozinho esse processo repleto de riscos.

Encenar Processo de cons(c)erto do desejo dentro de uma igreja tem muitos significados. Os tons próprios da oração ficarão ressaltados, assim como o drama humano, acredita. “Vai ser bonito fazer essa cerimônia no local sagrado, pois acho que isso vai banhar o trabalho de conceitos. Ao mesmo tempo, a igreja recebe um filho órfão que se queixa dos desígnios de Deus”, diz, antes de cair na gargalhada.

MATHEUS E O CINEMA
“A vida tem me dado alguns presentes. Como artista e como poeta, não posso me queixar”, diz Matheus Nachtergaele. No ano em que se reencontra com o teatro, a carreira nas telas prospera. Ele é um dos protagonistas de Big Jato, novo filme do diretor pernambucano Cláudio Assis. Este ano, estreia também Zama, sua parceria com a cineasta argentina Lucrécia Martel. Outro trabalho é Mãe é só uma, novo longa de Anna Muylaert, de Que horas ela volta?.

TIRADENTES EM CENA
Até dia 14, o Tiradentes em Cena apresentará 27 espetáculos. Com apoio do Estado de Minas, o festival aposta em espaços alternativos: sobrados, igrejas e  praças. Entre os destaques do primeiro fim de semana está Auto da paixão, da Trupe Ventania, grupo de Passos, no Sul de Minas, em cartaz sábado, às 17h, no Largo do Ó. O evento programou duas exposições. O Centro Cultural Yves Alves receberá uma retrospectiva da carreira do encenador mineiro Jota D’Ângelo. No sábado, o diretor faz tarde de autógrafos do livro Os anos heroicos do teatro em Minas, às 17h. No Museu de Santana, estará em cartaz a mostra Fernando Pessoa e outros exercícios de viver, de Lelia Parreira. O festival será aberto hoje, às 20h, com Paixão, de Nathalia Timberg, no Largo das Forras. Programação completa em www.tiradentesemcena.com.br.

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