Nos anos 1990, o pintor Iberê Camargo (1914-1994), artista então já com longa e respeitada carreira associada à abstração informal, causou sensação ao trazer a público um conjunto de grandes pinturas figurativas com personagens extremamente dramáticos.
Trabalhos da série Tudo é falso e inútil abrem a mostra Um trágico nos trópicos, com curadoria de Luiz Camilo Osório, que está sendo apresentada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-BH) até 28 de março. Traz mais de uma centena de trabalhos do artista: pinturas, gravuras e desenhos.
O ponto de partida são pinturas cujo motivo são prosaicos carretéis que o artista recria, continuamente, com o encanto de brincar com o objeto singular.
Pode-se notar o puro prazer com o fazer pintura (por si), a elegância gráfica e a afirmação explícita do gosto pelo lúdico e da autonomia da criação artística. Esses dois elementos se revezam, convivem e, às vezes, entram em atrito, com gestualidade rude, imagens grotescas, desconstrução e reconstrução a partir de resíduos. Sugerem considerações irônicas, catárticas (mas também, em alguns momentos, meditada) sobre o “peso” da vida e do mundo.
Apesar da palavra trágico no título da exposição, a curadoria de Luiz Camilo Osório modula, sem negar, o que é correto: o elemento dramático presente na obra do artista. Iberê Camargo, como o compositor Lupicínio Rodrigues (1914-1974), é exagerado. Esse é o charme deles. Mas o drama que eles elaboram não leva a clichês sentimentais.
Tanto o pintor como o compositor, por incrível que pareça, buscam a luz. E vão ao inferno, como diz a letra da canção Esses moços, em busca dela. Na busca de esclarecimento, o drama surge pelo fato de só encontrarem sombras (e raras faíscas de cores em meio à escuridão), opacidades, finitude das coisas.
A explicitude dos aspectos visuais não abole temas “sociológicos”. Como o indivíduo que – afundado em interiores e habitando mundo sem horizonte – é transformado em categoria genérica de experiência. Ou a detalhada e minuciosa consideração sobre a carnalidade dos personagens (mas também do mundo e das coisas), acuadas por violências, desejos, memórias. São demasiados fardos para corpos tão frágeis, seja o humano, o da pintura ou o da folha de papel.
Diante das obras de Iberê Camargo, especulativamente, fica a sensação geral de que tudo remete a um mundo tomado de névoa cinzenta. Névoa essa que a tudo devora, corroendo formas, limites, estruturas, valores etc.
A presença incontornável do feio, do bizarro, do desconfortável é extremada ao final da vida do artista. Esses trabalhos remetem à decisão de contestar (e, em especial, não reduzir) as possibilidades da pintura à estética da beleza e da habilidade que se tornaram paradigma da arte (e mais ainda da pintura). Pode-se ver Iberê Camargo pintando em vídeo que está na primeira sala da mostra. O filme mostra o artista em sucessivas investidas contra a tela, sujeitas a acertos e erros. São tantas que o “resultado” final é apenas um momento, o “possível” de um processo que poderia se prolongar infinitamente. Dilema que o vídeo registra ao acrescentar, no término do filme, a palavra “sem” à palavra “fim”..