'Os sertões': telegramas e cartas do front foram embrião de clássico da literatura

Nos 150 anos de Euclides da Cunha, leitura de material jornalístico conduz olhar sobre obra mais icônica do autor

por Agência Estado 20/01/2016 12:02

Correspondente do jornal O Estado de S.Paulo na Guerra de Canudos, Euclides da Cunha enviou ao jornal 22 cartas e 55 telegramas. Esses "despachos do front" seriam o embrião de Os sertões, clássico da literatura brasileira lançado em 1902 e calcado em três partes - terra, homem e luta.

O escritor já colaborava com o Estado desde 1888. Antes de partir para a Bahia, escreveu o primeiro artigo sobre a guerra, em julho de 1897. Em A nossa Vendêa, o autor comparou a Guerra de Canudos à rebelião monarquista contra a derrubada do antigo regime francês, ocorrida entre 1793 e 1795, na região da Vendeia. Para ele, Canudos era a última resistência à República brasileira.

Euclides viajou para o sertão da Bahia com intenção de escrever um livro sobre a guerra. Segundo nota publicada em 30 de julho de 1897, ele não só enviaria "correspondencias do theatro das operações" como tomaria notas e faria estudos "para escrever um trabalho de fôlego sobre Canudos e Antonio Conselheiro". Antes de seguir para a região do conflito, passou 23 dias em Salvador esperando autorização do Exército.

Arquivo EM/Reprodução
''O homem do sertão tem, como é de prever, uma capacidade de resistência prodigiosa e uma organização potente que impressiona'', escreveu o correspondente, direto de Canudos (foto: Arquivo EM/Reprodução)
Na capital baiana, escreveu a maioria das cartas, publicadas no Estado como Diário de uma Expedição. Entrou em Canudos em 10 de setembro de 1897 e de lá saiu em 3 de outubro, dois dias antes do fim da guerra, por causa de uma febre. Ao contrário das cartas, enviadas em intervalos maiores e com análises da situação, os telegramas eram quase diários e traziam informações pontuais com as principais notícias do dia.

Ainda em Salvador, Euclides viu soldados voltando dos sertões "feridos e convalescentes, tropegos e alquebrados, physionomias pallidas e abatidas". Também fez comentários sobre a destreza dos combatentes sertanejos, os quais comparou a "simios deslisando pelas catingas, como cobras, resvalando celeres, descendo pelas quebradas, como espectros, arrastando uma espingarda que pesa quasi tanto como elles - magros, seccos, phantasticos, com as pelles bronzeadas colladas sobre os ossos - asperas como pelles de mumias".

Para Euclides da Cunha, militar reformado, a tática usada pelos jagunços explorando a geografia dos sertões - "um labyrinto de montanhas" - era uma das razões que explicavam a resistência e as vitórias obtidas pelos seguidores de Antônio Conselheiro.

 

"Singular ao terreno e invisiveis como mysteriosas phalanges de duendes, as forças antagonistas irrompem inopinadamente de todas as quebradas, surgem de modo inesperado nas anfractuosidades das serras, nas orlas ou nas clareiras das mattas", escreveu na correspondência de 17 de agosto, completando a seguir: "Não há perseguil-o no seio de uma natureza que o creou à sua imagem - barbaro, impetuoso e abrupto".

Essa influência da terra sobre o homem Euclides sentiu quando entrou pela primeira vez na caatinga, em 1.º de setembro, por Queimadas. Diante dela, relatou que havia pensado que "faria prodigios", mas logo confessou o engano: "Perdi-me logo, perdi-me desastradamente no meio da multiplicidade das especies e atravessando o dedalo das veredas estreitas, ignorante e deslumbrado". Na mesma correspondência, trecho remete à frase mais conhecida de Os Sertões: "O sertanejo é, antes de tudo, um forte".

Ao analisar a resistência dos jagunços diante das condições físicas e geográficas, escreveu que o "homem do sertão tem, como é de prever, uma capacidade de resistência prodigiosa e uma organização potente que impressiona". "Não o vi ainda exhausto pela lucta, conheço-o já, porém, agóra, em plena exuberancia da vida. Difficilmente se encontra um specimen egual de robustez soberana e energia indomita."

Arquivo EM
Impressionado pelas táticas de resistência dos sertanejos enquanto correspondente da guerra, Euclides da Cunha considerava Canudos a última resistência à República brasileira (foto: Arquivo EM)
Em Canudos, Euclides pôde confirmar os relatos recolhidos em Salvador. Viu a resistência do sertanejo ao cerco do Exército e a intensos bombardeios. Nas últimas correspondências, em vários momentos viu o fim da guerra depois do silêncio que seguia o ataque da artilharia. Mas, quando os pelotões avançavam, dos destroços partiam tiros que derrubavam os soldados. "Sejamos justos - ha alguma coisa de grande e solemne nessa coragem estoica dos nossos rudes patrícios (...) a conquista real consistirá no incorporal-os (...) à nossa existência política."

Nos papéis do Exército, suspeitas de traição e textos criptografados
Enquanto Euclides da Cunha e outros correspondentes na Guerra de Canudos enviavam telegramas aos jornais para relatar o conflito com a maior quantidade de detalhes possível, os oficiais no comando da campanha contra os sertanejos mandavam mensagens criptografadas para o Ministério da Guerra. O Exército estava convencido de que aqueles homens e mulheres maltrapilhos, que resistiam às bombas em casebres de barro e palha do arraial de Antônio Conselheiro, pudessem ter informantes e apoios importantes na rede postal de Monte Santo, Salvador e Rio de Janeiro.

Documentos militares guardados em 11 caixas no Arquivo Histórico do Exército, no Rio, mostram, praticamente ao longo de toda a campanha, que os comandantes das tropas tiveram a mesma visão de parte considerável da opinião pública da capital, de que os moradores de Canudos eram movidos pela "bandidagem" e pelo "fanatismo".

Uma análise dos documentos revela, aos poucos, falhas de comunicação, logística e estratégia de combate, as questões que mais doem em homens preparados para batalhas sangrentas. Os militares tentam, porém, justificar nos relatórios os erros grosseiros, que seriam revelados ainda no tempo da guerra, por parte do coronel Moreira César, chefe da terceira e penúltima expedição militar, morto em combate. Ele achou que seria fácil entrar em Canudos e resolveu atacar o povoado antes de organizar seus homens. "Vamos almoçar lá!", disse, otimista. Os sertanejos esperaram a tropa se aproximar para surpreender Moreira César, que morreu sem pôr os pés no arraial. Um relatório suaviza os erros do coronel e aponta a falta de "cavalhada" como causa do desastre militar.

Estratégia
Na papelada, há relatos sobre oficiais que foram questionados por superiores por supostas falhas de estratégia militar. É o caso do major Febrônio de Brito, que por pouco não foi fuzilado pelos próprios companheiros. "Esse oficial foi preso sujeito a conselho de guerra", registra um documento. Brito teria descumprido uma ordem ao recuar numa operação. Depois, numa suposta reavaliação do caso, o oficial foi libertado, pois teria tomado a melhor decisão na hora de se aproximar do arraial.

O fogo amigo e as suspeitas de traição atingiram até o médico pernambucano enviado pelo Exército para chefiar o Hospital de Sangue, instalado provisoriamente na cidade de Queimadas e depois transferido para as proximidades de Canudos. Enquanto tratava praças e oficiais feridos e contaminados, o major José Miranda Curió era acusado de desrespeitar a hierarquia e ter uma atuação independente.

Ao chegar ao sertão baiano, o general Arthur Oscar Andrade Guimarães, chefe da quarta e última campanha contra os sertanejos, determinou que, só com sua ordem, os feridos poderiam sair do campo de batalha, diminuindo o poder de decisão do médico.

Fuga do inferno
Entrar na lista de "sahídas" do doutor chefe do hospital era uma forma possível de fugir legalmente do inferno e escapar de um Exército com poucos "víveres" e "gêneros alimentícios", do paludismo, da varíola e de oficiais muitas vezes confusos e despreparados para uma guerra sob o sol escaldante do sertão.

Cartas do médico a Arthur Oscar solicitando a remoção de praças e oficiais tornaram-se diárias, assim como as mortes e os ferimentos graves.

"Passo às vossas mãos a inclusão de praças pertencentes à Divisão sob vosso digno commando que necessitam ser enviadas para a capital por não poderem ter aqui neste acampamento o tratamento que se torna necessário e urgente", escreveu o médico em 26 de março de 1897.

Uma estimativa oficial de baixas feitas anos depois sugeriu que o Exército "perdeu" em combate 15 mil homens, entre mortos, feridos, "extraviados" e "vitimados". O número arredondado pode estar longe da realidade histórica. Mas os relatórios parciais do Serviço Sanitário das Forças em Operação em Canudos apontam mortes diárias e números elevados de entradas de feridos nas barracas médicas. Só entre os dias 12 e 14 de agosto de 1897 o Hospital de Sangue registrou a morte de dois praças e o atendimento a 125 militares, entre soldados e oficiais.

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