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Biografia

Cabeleira do Zezé conta histórias de João Roberto Kelly, autor de marchinhas

Livro reúne 72 histórias sobre a vida e obra musical do artista

Walter Sebastião
João Roberto Kelly, em 1965, quando venceu concurso com três clássicos: Mulata bossa-nova, Joga a chave, meu amor e Rancho da Praça 11 - Foto: João Rodrigues/O Cruzeiro/EM/D.A Press
“Chega uma hora que a gente tem que passar o que viveu e o que vida trouxe para nós”, observa João Roberto Kelly, de 77 anos, o autor de marchinhas como Cabeleira do Zezé, Maria Sapatão, Mulata bossa-nova (Mulata iê-iê-iê). “Acho simpático quem tem história, contá-las”, acrescenta. O artista se refere ao livro Cabeleira do Zezé e outras histórias (Irmãos Vitale Edições), dele e do músico e cineasta André Weller, que reúne 72 histórias sobre a vida e obra musical. “Não é livro nostálgico, mas com histórias de personagem intrigante, compositor original, que não pode continuar sendo ouvido só no carnaval”, avisa Weller, de 44 anos, que também é pianista.

“Canto, mas meu xodó é compor. Desde cedo, já gostava de inventar melodias e a curiosidade só foi aumentando a cada dia que vivi”, conta Kelly. O estudo de piano, desde cedo, e família que cultivava a música deram base para a opção pela música. “Apoio da família é importantíssimo. Traz tranquilidade, autoconfiança, estímulo.
Ela é a primeira plateia, os primeiros amigos”, justifica. Ele avisa que, como todos, a vida dele também teve momentos difíceis. “Sem eles, os bons não têm graça”, brinca. “Mas prefiro lembrar das coisas boas e construtivas. Sou católico. Viver de acordo com a fé traz força, rumo, te integra em conjuntura espiritual forte”, argumenta.

As primeiras composições foram feitas para teatro de revista. Veio dos palcos o Samba do telecoteco, composição gravada, em 1958, por Aracy Cortes e, logo depois, por Waldir Calmon, a estreia em disco. “Foi uma realização total. O primeiro carimbo, quando se é compositor, é a gravação”, conta Kelly. Ele diz que não tem interpretações que goste mais. “Todas me encantam”, observa. Saboreia com satisfação, explica, antigas gravações de Elza Soares, Jorge Goulart, Emilinha Borba, Ciro Monteiro. E também regravações, como a de Alcione.
E ainda as muitas versões das composições dele que pode ouvir, todos os anos, durante o carnaval. “Nunca fui de compor por compor, cada uma das músicas veio de um sentimento. Então gosto de todas, são como filhos”, explica.

Kelly faz letra e música, mas também musica textos. Não é de ficar mexendo na composição depois de pronta, mas, conta, às vezes dá uma burilada. Conselho, para quem quer se dedicar à composição, é humildade e autocrítica. “Acredite no que fez, mas tenha autocrítica. Quem não tem autocrítica não é artista. E mostre o realizado para sentir a opinião do outro, porque ninguém é dono da verdade”, ensina. Recomenda ainda realismo, já que “nem tudo depende do artista”.

Momento especial, para João Roberto Kelly, foi vencer, em 1965, concurso de marchinhas do 4º Centenário do Rio, com três músicas: Mulata bossa-nova, Joga a chave, meu amor e Rancho da Praça 11. “A coisa mais bonita, para um compositor, é ver o povo cantando a música que ele fez.
Em vez de uma, tive três composições cantadas num mesmo carnaval. Foi presente de Deus”, comemora. “Minha maior alegria, hoje, é ver as minhas composições passando de geração em geração”, conta Kelly. “Vi, em 2015, um bloco de crianças, chamado Gigantes da Lira, cantando as minhas músicas. Me deu uma satisfação enorme, maior do que receber qualquer troféu”, afirma.

Durante a temporada de festejos, João Roberto Kelly costuma fazer shows e ver desfile de blocos. “Me considero um folião”, observa. O compositor comemora o fato de a juventude ter tomado posse da festa e “principalmente a revitalização das marchinhas, que ficaram muito tempo esquecidas”, observa. “Acho o fenômeno dos blocos maravilhoso. Surgiu naturalmente, sem incentivo de ninguém, e se espalhou por todo o Brasil. E a folia de rua, para mim, é o verdadeiro carnaval”, afirma.

“O carnaval é a maior festa popular do mundo, a maior demonstração de descontração que um povo pode fazer. Não existe nada no mundo parecido com o carnaval brasileiro”, garante. Kelly também não tem um carnaval favorito. “Cada um tem o seu encanto e o jeito de ser. O de Recife, da Bahia, de Ouro Preto, do Rio de Janeiro, do interior de Minas Gerais, são todos maravilhosos”, afirma definindo os festejos como o momento de explosão do Brasil. “É um momento mágico. A vida pode estar difícil, como agora, podem aparecer grandes problemas, mas o povo deixa a tristeza de lado e vai brincar”, afirma.

SEM NOSTALGIA “A obra de João Roberto Kelly vai além das marchinhas”, avisa André Weller. O parceiro conta que o compositor tem repertório romântico e de sambas que merece ser conhecido e ganhar “outro olhar” dos intérpretes. “Cabeleira do Zezé, Maria Sapatão, Mulata bossa-nova, Bota camisinha são composições que articulam letras curtas, estruturas musicais simples e genialidade de escrita. As composições têm respiração, pausas, entre uma frase e outra que permitem às pessoas acrescentar palavras, o que cria parceira com o folião”, explica. “João Roberto Kelly compõe pensando nisso”, frisa.

O livro nasceu após Weller ter realizado o curta No balanço de Kelly (2010), já disponível no YouTube, em que toca e conversa com o compositor, investigando a maneira dele de criar. Entre os planos para o futuro, Weller deve fazer shows com o compositor contando as histórias que estão no livro. E ainda pretende rodar um longa-metragem sobre o compositor Ary Barroso. Segundo ele, os projetos são movidos pela admiração “por artistas difíceis de classificar”. Como Miltinho, exemplifica, tema de outro filme dele (No tempo de Miltinho). André Weller dirige programas para o Canal Brasil e é cocurador do novo Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. O pianista integrou o grupo Família Roitman, com quem gravou o disco O samba nas regras da arte.

Cabeleira do Zezé e outras histórias
De João Roberto Kelly e André Weller
Irmãos Vitale Edições
168 páginas
l R$ 47.