Faltavam apenas 10 minutos para o novo ano. Enquanto grande parte dos brasileiros já estava na contagem regressiva para 1989, cerca de 142 pessoas – nunca se chegou a uma conclusão sobre o número exato porque não havia lista de passageiros – iriam passar pelos piores e, no caso de algumas, os últimos momentos de suas vidas. Quando se aproximava da Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, para ver a famosa queima de fogos do réveillon, o barco Bateau Mouche 4 naufragou, fazendo 55 mortos, entre eles a atriz Yara Amaral e a mineira Maria José Andrade Teixeira, mulher do ex-ministro Aníbal Teixeira, que sobreviveu ao acidente, mas morreu ano passado, de pneumonia, em Belo Horizonte.
Pela primeira vez, esse desastre náutico, que entrou para a história da nossa navegação, foi parar nas páginas de um livro. 'Bateau Mouche – Uma tragédia brasileira' é a 15ª publicação do escritor carioca Ivan Sant’Anna, de 75 anos. O autor já se debruçou sobre outras catástrofes em 'Caixa preta' e 'Perda total', sobre desastres aéreos; 'Plano de ataque', que relata o atentado terrorista de 11 de setembro, e 'Os mercadores da noite', thriller que tem como pano de fundo os meandros do sistema financeiro internacional.
MÁFIA ESPANHOLA De maneira ágil, objetiva e informativa, sem ser sensacionalista, Sant’Anna esmiuça toda a história do naufrágio. Além de dar um panorama do ano de 1988, ele relata a origem do barco, construído em Fortaleza com o nome de Kamaloka e que tinha capacidade inicial de 20 passageiros. Anos depois, quando foi adquirida pela chamada “máfia espanhola” – como foram chamados seus proprietários, Álvaro Pereira da Costa, Avelino Rivera, Faustino Puertas Vidal, Ramon Rodriguez Crespo e Mário Rodriguez Triller pela opinião pública após o ocorrido –, a embarcação foi reformada, aumentando sua capacidade para 150 pessoas.
O autor relata todos os detalhes do acidente, o resgate, descreve como as pessoas conseguiram sobreviver e analisa os diversos fatores que levaram à catástrofe: superlotação, negligência e fiscalização ineficaz. E consegue construir uma narrativa sobre a tragédia, com final conhecido por todos, em algo atraente e surpreendente.
A ideia do livro surgiu há cerca de 15 anos. Naquela época, Ivan era um dos roteiristas do programa Linha direta, da Rede Globo, que chegou a fazer um episódio reconstituindo a tragédia do Bateau Mouche. “Já havia começado minhas pesquisas na Biblioteca Nacional, mas, como a Globo fez aquele especial, numa atração em que eu trabalhava, achei que não era hora para publicar. Há pouco tempo, retomei e dei uma atualizada, porque muita coisa aconteceu, como a evolução dos processos, condenações e novas entrevistas”, destaca.
HEROÍSMO Vários foram os motivos apontados para o naufrágio. O primeiro deles foi o posicionamento da caixa d’água no teto da embarcação, o que deslocou o centro de gravidade para cima e ajudou o barco a adernar. As ondas de dois metros agravaram a instabilidade. Outro fator apontado por Sant’Anna foi o deslocamento, simultâneo, dos passageiros para boreste (lado direito) do Bateau Mouche.
O autor aponta ainda que as escotilhas e vigias não eram estanques e, com o excesso de peso, ficaram abaixo do nível do mar, alagando os compartimentos inferiores, e as bombas de esgotamento (que jogam a água para fora da embarcação em caso de alagamento) não funcionavam perfeitamente.
“A superlotação, a meu ver, não pode ser apontada como uma das causas, porque três dias antes a Capitania dos Portos fez uma vistoria e liberou o Bateau Mouche para navegar com 150 pessoas, apesar de ele ter sido projetado para transportar 20. Nem inspeção antes de navegar houve. A relação marinheiro/passageiro praticamente não existiu nesse episódio”, observa.
A tragédia teria sido muito maior se não fosse pelo heroísmo e solidariedade de outros barcos. A traineira de pesca Evelyn & Maurício, comandada pelo seu dono e mestre de embarcação Jorge Viana, e o iate Casablanca, de Oscar Gabriel Júnior, estavam próximos ao local do acidente e resgataram vários sobreviventes.
IMPUNIDADE Passados 27 anos, praticamente ninguém foi indenizado ou punido. Para Ivan Sant’Anna, a impunidade se deve ao fato de não ter só um culpado, mas vários. “A Marinha teve culpa, os proprietários do barco, a empresa que o contratou para fazer a festa em alto-mar e o mestre-arrais do Bateau Mouche, Camilo Faro, que acabou afundando com o barco”, aponta o pesquisador.
TESTEMUNHO
O advogado Boris Lerner sobreviveu ao naufrágio, mas perdeu a mulher e um filho. O depoimento, dado ao Jornal do Brasil e reproduzido no livro, resume bem o sentimento dos que viveram a tragédia. E, pelo que relata, pouco mudou desde aquele fatídico 31 de dezembro de 1988: “Tantas alegações de isenção de culpa me fazem pensar que não tenha sido apenas vítima, mas que tenha contribuído para a tragédia, quando, inocentemente, comprei as passagens para o passeio da morte. Fomos todos muito ingênuos, entrando no mar em um barco impróprio, com nossos familiares e amigos. Infelizmente, no país em que vivemos, mais vale desconfiar de tudo e de todos até que se prove o contrário. Não há exagero quando se diz que estamos em terra de corrupção e suborno generalizados, impunidade e falta de respeito para com o próximo”.
BATEAU MOUCHE – UMA TRAGÉDIA RASILEIRA
De Ivan Sant’Anna
Editora Objetiva
168 páginas,
R$ 34,90/R$ 23,90
(e-book)
VEM POR AÍ
Em 2016, Ivan Sant’Anna vai lançar dois livros. Um deles é Eros, em parceria com a jovem escritora paulista Analu Andrigueti, um “livro fantasioso”, na definição do escritor. Conta a história de um homem e uma mulher em épocas diferentes que se encontram no juízo final. O outro título é mais um sobre aviação, Voo cego, escrito com o comandante gaúcho Luciano Mangoni.