Bioarte ganha espaço na cena contemporânea

Movimento usa elementos da biologia na criação de obras artísticas. A tendência, contudo, é alvo de controvérsia e debates éticos

por Correio Braziliense 31/12/2015 08:00
Joe Davis/Divulgação
Trabalho do americano Joe Davis em exposição: técnicas de biologia molecular para criar obras artísticas (foto: Joe Davis/Divulgação)
Joe Davis é um artista que não trabalha somente com tinta e tela, mas também com genes e bactérias. Em 1986, ele colaborou com o geneticista Dan Boyd para codificar um símbolo para a vida e a feminilidade na bactéria E. coli. A peça, chamada Microvenus, foi a primeira obra a usar ferramentas e técnicas da biologia molecular. Desde então, a bioarte se tornou uma das muitas formas de expressão contemporânea, como a nanoarte, que utiliza métodos e tecnologias científicas para explorar sistemas vivos como objetos artísticos. Esse campo crescente mereceu um especial na revista especializada Trends in Biotechnology.

A bioarte vai da manipulação de bactérias para fazê-las assumir a forma de coelhos fluorescentes a esculturas celulares, passando – no caso da artista australiana Nina Sellars – pela documentação de uma orelha prostética implantada no braço de um homem. Na perseguição pela criação artística, os praticantes geraram ferramentas e técnicas que ajudaram pesquisas, mas também deram fruto a obras controversas, como lançar espécies invasivas no ambiente. Além disso, embaraçam as linhas entre arte e biologia, o que pode levantar questões filosóficas e ambientais que desafiam o pensamento científico.

“A maior parte das pessoas não sabe que a bioarte existe, mas ela pode ajudar cientistas a terem novas ideias, além de nos dar oportunidade de olhar para os problemas de maneira diferente”, analisa Ali K. Yetisen, que trabalha na Faculdade Médica de Harvard e no Centro Wellmen de Fotomedicina, do Hospital Geral de Massachusetts. “Ao mesmo tempo, há uma grande quantidade de questões éticas e de segurança. Artistas que quiseram se envolver nisso no passado cometeram alguns erros”, ressalva.

ERROS E ACERTOS Há diversos exemplos de saberes científicos obtidos graças à expressão artística, lembra o especialista. Entre um experimento e outro, o biólogo britânico Alexander Fleming pintava paisagens, às vezes sobre o papel, outras em placas de Petri, usando bactérias. Em 1928, depois de se afastar brevemente do laboratório, ele notou que porções desses “germes pintados” haviam morrido. A culpa era de um fungo, a penicilina, uma descoberta que revolucionaria a medicina por décadas. Já em 1938, o fotógrafo Edward Steichen usou um composto químico para alterar geneticamente plantas do gênero Delphiniums, com o objetivo de produzir variações esteticamente interessantes do vegetal. Essa substância, a colquicina, mais tarde seria utilizada por agricultores para produzir mutações em grãos e plantas ornamentais.

Foi no fim do século 18 e no início do 19 que arte e ciência se separaram, formando divisões que persistiram ao longo dos 100 anos seguintes. Na década de 1970, contudo, houve um retorno do interesse em aproximar as duas áreas. E, a partir desse momento, conta Yetisen, algumas obras um tanto controversas foram realizadas. Para demonstrar como o homem muda paisagens, por exemplo, o escultor americano Robert Smithsonian pavimentou uma montanha com asfalto, enquanto o búlgaro Christo Javacheffa construiu uma barreira de plástico rosa-brilhante ao redor de uma ilha.

Algumas peças podem ser, de fato destrutivas. Foi o caso de 10 tartarugas libertadas, do alemão Hans Haacke, que buscava chamar a atenção para o comércio excessivo de animais domésticos. Haacke intencionava lançar tartarugas ameaçadas em seu hábitat, na França. Mas, inadvertidamente, libertou a subespécie errada, comprometendo linhagens genéticas de quelônios ameaçados de extinção, à medida que duas variantes diferentes começaram a cruzar.

ESTRUTURADO Na década de 1990, avanços tecnológicos aumentaram o interesse de artistas pela biologia, e, por volta dos anos 2000, um movimento mais bem estruturado começou a se formar. Seguindo a Microvenus, de Joe Davis, veio uma jaqueta de couro em miniatura, feita com células da pele, como parte do Cultura Tecidual & Projeto Artístico, iniciativa lançada em 1996 por Oran Catts e Ionat Zurr. Outros exemplos de bioarte incluem o uso de cactos mutantes para simular a aparência de cabelo humano, de Laura Cinti; a modificação de asas de borboletas, por Marta de Menezes; e fotografias de deformações de anfíbios, de Brandon Ballengée. “A bioarte encoraja a discussão sobre questões sociais, filosóficas e ambientais e pode ajudar a melhorar a compreensão do público sobre os avanços da biotecnologia e da engenharia genética”, avalia Ahmet F. Coskun, da Divisão de Química e Engenharia Química do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech).

Hoje, Joe Davis é um pesquisador do MIT e “artista-cientista” do Laboratório George Church, de Harvard, um lugar onde criatividade e desenvolvimento tecnológico em engenharia genética e biologia sintética convivem. “Isso é Oz puro e simples”, diz Davis, referindo-se ao reino mágico da obra de L. Frank Baum. “Com a quantidade total de recursos nesse ambiente e com as mentes que são acessíveis aqui, é como vir à cidade de Oz todos os dias”, define. Atualmente, ele trabalha com análises metagenômicas da poeira que se acumula nas máquinas que contam dinheiro. Outro projeto envolve minhocas da seda geneticamente modificadas.

“Colaboro com muitos colegas em projetos que não necessariamente têm resultados científicos diretos, mas eles estão animados em prosseguir nesse caminho, para o qual poderiam não ter olhado normalmente. Muitos cientistas têm alma poética”, diz Davis. “A arte, como a ciência, tem de descrever o mundo, e você não pode descrever algo sobre o qual não tem pistas. A melhor parte dessas atividades é saciar a curiosidade sobre tudo que nos cerca.”

O artista-cientista diz que o número de pessoas que se dedicam à bioarte ainda é pequeno, parcialmente devido à falta de financiamento. Os equipamentos necessários para o trabalho nesse campo também podem ser um entrave. Enquanto Davis faz parceria com laboratórios, muitos artistas não conseguem ter acesso a eles. “Na era da engenharia genética, a bioarte ganhará novos significados e posições nos contextos social e científico”, aposta Ali K. Yetisen. “Os bioartistas vão certamente ter um papel nos laboratórios de ciência, mas isso ainda será objeto de criticismo ético e controvérsia, sem sombra de dúvidas”, prevê.

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