Pintura do artista mineiro Dionísio revela o lado encantador da metrópole

Bares de BH ganham novo colorido sob os pincéis do artista, que não se dobrou ao AVC e aprendeu a trabalhar com a mão esquerda

por Walter Sebastião 27/10/2014 07:00

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Fotos: Beto Novaes/EM/D.A Press
O artista plástico transforma o bar em palco das emoções humanas (foto: Fotos: Beto Novaes/EM/D.A Press)
“Não é a gente que escolhe a arte, é ela que nos escolhe”, afirma Antônio Dionísio da Cruz, de 77 anos, apoiado na bengala, na sala de seu apartamento no Bairro Jardim Atlântico, em BH. As palavras e o sorriso têm significado especial: em 25 de julho de 2000, um acidente vascular cerebral paralisou o lado direito do corpo do pintor. O AVC interrompeu a atividade artística e as aulas de violão, essenciais para a sobrevivência da família. Dionísio ficou revoltado, mas voltou à pintura três meses depois. Passou a trabalhar com a mão esquerda.

Dois quadros surrealistas, feitos logo depois da doença, abriram caminho para a retomada. Dionísio cria preciosas cenas urbanas cuja potência plástica, poesia e bom humor encantam. Se BH é a capital dos botecos, esse artista é o melhor tradutor da vocação da cidade. Afinal, botequins e seus nomes divertidos são recorrentes na obra dele. Tal ambiente, observado com ironia, é considerado por Dionísio a síntese de muitos sentimentos. Um pequeno teatro onde se mesclam alegrias e dramas do ser humano.

“O violão ajudou na recuperação”, conta ele. O instrumento musical exige muito da mão esquerda. “Pintar assim cobra muita persistência, vontade de vencer”, acrescenta. Poder movimentar apenas um braço, lembra Rosângela Caldeira Brant da Cruz, mulher do artista, faz com que abrir o tubo de tinta (e ele usa muitas cores) seja complicado. “Só de vez em quando me lembro da mão direita”, brinca Dionísio, vitorioso. De fato, diante de belos quadros – novos e antigos –, o “antes” e o “depois” do AVC se tornam mero detalhe.

Dificuldades na fala não impedem Dionísio de refletir sobre o mundo e a arte. Ele o faz pausadamente, mas com contundência. “Sou louco pela humanidade. Gosto de pintar as pessoas, de vê-las dançando, namorando e passeando. A gente tem que gostar do mundo, não pode sair por aí sem dar bom-dia”, afirma. Uma tristeza herdada do AVC: não ser capaz de passear sozinho pela cidade.

“Pinto para mim. Invento minhas imagens, mas fico muito feliz quando as pessoas gostam do que faço”, afirma. As cenas são criadas de memória. “Também faço retratos”, ressalta ele. Geralmente, o artista prioriza ambientes urbanos, mas não deixa de pintar a roça. “Vim de lá. Quando cheguei, Belo Horizonte era também uma roça”, observa.

Beto Novaes/EM/D.A Press
Dionísio trabalha em seu apartamento, no Bairro Jardim Atlântico, em BH (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
A família preferia que ele tivesse um emprego, em vez de pintar. “Ouvi de minha irmã que o ser humano tem pecado na mão. Pintei um retrato do meu pai e da minha mãe e mostrei a ela”, conta. Entretanto, vender arte é um desafio. “A sensação é de que o Brasil não valoriza o artista. As pessoas acham que, pelo fato de ser aposentado, a pintura é hobby. Não é. Pintar é a minha profissão. Arte traz realização, não dinheiro. O sujeito tem que ser corajoso: se você não vende, arrisca-se a passar fome”, alerta.

CAÇULA

Antônio Dionísio da Cruz nasceu em Pitangui, na Região Central do estado. É o caçula dos nove filhos de Maria das Mercês e João da Cruz. Com 3 anos, ele se mudou para BH. Aos 4, ganhou um cavaquinho. Mais tarde, a família tentou empregá-lo numa fábrica de calçados. “Não gostei, preferia a música.” Os estudos também não o atraíram. “Matava aulas. Certo dia, fui admirar os quadros de Nazareno Altavilla numa exposição no Edifício Sulacap. Pensei: vou pintar também.”

E assim ele fez. Aprendeu contabilidade e arrumou emprego, mas sem abandonar a pintura e o desenho. Começou (e não concluiu) estudos de música na Universidade Federal de Minas Gerais, além de participar de feiras de arte em Contagem e na Praça da Liberdade.

Em 1977, às vésperas de se casar, avisou à noiva, Rosângela, que pensava em se dedicar apenas à arte. “Foi um alerta de que a vida não seria fácil, mas era a realização dele”, conta ela. O casal tem duas filhas. Dionísio se dedicou às exposições e a fabricar violões. “Para viver de arte, você tem que ser humilde e corajoso”, diz. Em 1974, ele pintou uma fila do INSS, retrato da crise social. Censurada, a obra foi retirada de um salão realizado no Museu de Arte da Pampulha.

A origem da pintura de botecos vem de Van Gogh. Dionísio é encantado com cafés e bares retratados pelo artista, mas, em certos trabalhos, vê esse ambiente com desconfiança. “Dizem que os mais velhos ensinam os mais novos a beber. Não é verdade. Não bebo, mas meus irmãos beberam muito”, pondera o ex-fumante. A admiração por Van Gogh tem um motivo: o holandês não copia ninguém.

Outra escola

Dionísio faz parte de um grupo de autores admiráveis vindos de pequenas cidades, áreas rurais mineiras e de periferias de BH. Todos começaram por volta de 1970, fazendo da capital berço de desenvolvimento e irradiação de sua arte. É o caso de Lorenzato, Artur Pereira, José Luiz Rodrigues, Damasceno, Rodelnégio, Valentim Rosa, José Assunção e Dona Isabel. Com visualidade que reinventa o cotidiano popular, esses autores criaram um autêntico “movimento”, reafirmando os valores da modernidade com um registro muito singular. Todos merecem ser melhor estudados, conhecidos e inseridos no contexto da arte brasileira.

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