João das Neves prepara projeto de preservação de sua trajetória no teatro

Próximo trabalho do diretor e dramaturgo terá como personagem Madame Satã

por Carolina Braga 15/07/2014 10:38

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Beto Novaes/EM/D.A Press
Diretor de peças e musicais que marcaram época, João das Neves foi um dos criadores do show 'Opinião', que lançou a cantora Nara Leão (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
São três pequizeiros no quintal. O cheiro domina a casa e quem gostar do fruto do cerrado é só chegar. O diretor e dramaturgo carioca João das Neves apresenta com gosto o canto onde vive, em Lagoa Santa. As árvores frutíferas fazem parte do cenário que abriga boa parte da memória do teatro brasileiro. Tem o sossego necessário para criar. Dos 80 anos, completados em janeiro, pelo menos 23 foram vividos em Minas. Com uma discrição mais mineira que carioca, um dos fundadores do Teatro Opinião, um dos mais importantes da história do moderno teatro brasileiro, mantém sua atividade reforçando as convicções que tem sobre arte.

“Se você se contenta com o que já foi feito, acaba não tendo significado. A arte é uma crise, um questionamento e uma insatisfação constantes. Se paro dentro de uma forma que sei que está consagrada, deixa de ser arte e passa a ser um objeto morto”, ensina. É assim que demonstra energia renovada para os projetos que toca em 2014. São muitos, entre eles, a direção do novo espetáculo do Oficinão do Galpão Cine Horto e outro dedicado à recuperação do acervo que tem em casa.

Como João das Neves foi quem “fechou as portas” do Opinião, todo o material do grupo, ativo no Brasil entre 1964 e 1982, está com ele. Tem relíquias como fita de rolo com a gravação do musical Opinião (1964), que revelou Nara Leão, toda a repercussão na mídia de montagens como O último carro (1976) e fitas cassete com áudios das montagens, entrevistas, além de textos originais. “Estão guardados da maneira que posso guardar, mas inadequadamente”, reconhece.

O projeto Memória João das Neves – 50 anos de teatro brasileiro será coordenado pela cantora Titane, companheira do diretor, e contará com participações de profissionais especializados. A partir de agosto, será feito o levantamento de todo o material guardado para a recuperação, digitalização e posterior publicação na internet.

“Tenho escrito muita coisa a respeito do Opinião, quero organizar e tentar fazer um livro especificamente sobre o grupo”, adianta. João das Neves diz que tem escrito muito ultimamente. Tem texto inédito para adultos e crianças, cordéis comprometidos com a questão ambiental de onde mora, crônicas e poesia. “Não me considero um escritor profissional, a não ser na área de teatro. Escrevo pelo prazer.” O que vier depois disso, para João das Neves, é sempre lucro.

“O sucesso para a arte é como o poder para o político. Não é que não combinam. Só que se você adquire poder e se contenta com ele, o ideal político desaparece. Na arte é a mesma coisa. Pode ser um imenso artista e não ter o menor sucesso. Agora, se em algum momento o obtém, se se contenta com o que já fez e preserva a fórmula, nada mais terá a mesma força. Vai se perdendo como artista”, reflete. É com a disposição para o novo que o diretor encara a nova empreitada no Galpão Cine Horto.

Pesquisa Na verdade, João das Neves deveria ter sido o primeiro diretor do projeto Oficinão, criado em 1998, junto do espaço cultural mantido pelo Grupo Galpão, no Horto. Por incompatibilidade de agendas naquele momento, o encontro não deu certo. Agora, João das Neves assume o comando com os atores do Grupo dos Dez em cena. A companhia, dedicada à pesquisa dos espetáculos de teatro musical tipicamente brasileiros, escolheu se debruçar na vida e nos mitos em torno de um dos personagens mais controversos da história do Rio: Madame Satã.

“Essa figura é fascinante. Sou carioca, então é um universo muito conhecido”, diz. A montagem ainda encontra-se em fase inicial, de pesquisas e leituras. João das Neves será o responsável pela dramaturgia final, mas todo o processo será feito de maneira colaborativa. A equipe pesquisará a boemia carioca e textos de autores como João Silvério Trevisan. “A gente começa a ler e com essas leituras surgem as improvisações e, delas, os textos.”

Mostrar as contradições da sociedade é algo que sempre seduziu o teatro de João das Neves. Ainda que ele não tenha ideia do que, de fato, será o espetáculo, está certo de que esta característica estará presente. “É um personagem muito curioso. Para começo de conversa, era negro, forte, alto, sedutor, que respondia à violência com violência. É um marginal que tem a consciência de si mesmo”, explica.

Para João das Neves, o teatro é o lugar ideal para mostrar as contradições. “Dos meios inventados pelo homem, é o melhor, porque tem a imensa vantagem da comunicação direta. É um meio quente, porque estou diante das pessoas. Cada dia que se realiza é diferente. O veículo disso é o ator, que está vivo diante de você”, conlcui.

Da filosofia para o palco

Quando pensa em sua primeira experiência teatral, João das Neves descreve a cena com sorriso no rosto e um certo ar nostálgico. “Foi na escola. Tínhamos um jornal fundado por nós, alunos, chamado A Seiva, e tivemos a ideia de fazer um grupinho de teatro. Comecei como ator e o diretor era nosso professor de português”, lembra.

Na hora de escolher a profissão, o filho de farmacêutico chegou prestar vestibular para medicina e filosofia. “Fiquei na filosofia, mas, na época, a Dulcina abriu uma academia de teatro e me convidou para fazer parte do corpo docente com uma série de diretores italianos que trabalhavam no TBC de São Paulo, além de Maria Clara Machado, Cecília Meireles e outros. Aí, abandonei o curso e fui para o teatro”, conta. Nunca mais saiu.

SAIBA MAIS

Resistência

Fundado em plena ditadura militar, o grupo Opinião, como diz João das Neves, se voltou fundamentalmente para a complexidade da sociedade brasileira. “Mergulhar nesse mundo, compreendê-lo e propor por meio da atividade artística encaminhamentos e discussões aprofundadas desse universo”, sintetiza. Com o objetivo de criar um foco de resistência, o show musical protagonizado por Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale marcou o nascimento da companhia, que teve em suas produções nomes como Augusto Boal, Millôr Fernandes, Flávio Rangel, Paulo Autran, Tereza Raquel, Oduvaldo Vianna Filho, Ferreira Gullar, Agildo Ribeiro, Odete Lara, Oswaldo Loureiro, Jofre Soares e Marieta Severo. Foi um teatro de resistência, com viés político amplo. “Um pensamento aberto à discussão e com uma preocupação artística muito forte.”

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