Ghost writers atraem celebridades e empresários que querem 'autobiografia'

Jornalistas e escritores deixam o ego de lado para conquistar clientes dispostos a contar suas histórias em livros

por Mariana Peixoto 09/02/2014 00:13

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Arte/EM
(foto: Arte/EM)
O ideal é que ele desapareça. Se for notado, é porque existe algum problema. Filão do mercado editorial, a autobiografia nem sempre tem somente um autor. Ou melhor, em muitos casos o autor não foi quem escreveu as próprias memórias. “O maior elogio que um ghost writer pode receber é ouvir que os livros que escreveu são muito diferentes”, afirma Tânia Carvalho, jornalista carioca e escritora-fantasma de uma dezena de livros.

Ghost writers, a priori, não existem. Seus nomes não são creditados nos livros que escreveram. “Aquela história não é sua. Muitas vezes, o que o ghost faz é organizar o pensamento do biografado para ser transformado em livro”, continua Tânia, que por razões óbvias não revela quais as autobiografias que escreveu – e em todos os contratos que assina há uma cláusula de confidencialidade. De acordo com ela, são três os perfis de biografados: famosos que têm projetos lançados por editoras; pessoas de mais idade que querem deixar sua história para familiares e amigos; e grandes empresários, que buscam contar sua trajetória nos negócios.

“Existem vários tipos de ghost que atuam no meio editorial”, afirma Tatiana Fulas, diretora de projetos especiais da Panda Books, que tem entre seus best-sellers O doce veneno do escorpião, livro em primeira pessoa que traz o relato de Bruna Surfistinha. Ainda que seja o “nome de guerra” da ex-garota de programa a figurar na capa, a narrativa foi escrita pelo jornalista Jorge Tarquini (leia abaixo). “O nome dele aparece na folha de rosto, como ‘Depoimento a Jorge Tarquini’. A escolha vai depender do autor. Há aqueles casos que pedem que o nome do ghost não apareça, então ele realmente assume a função de fantasma. E há os casos  em que é citado como coautor”, continua Tatiana.

Tânia Carvalho nunca foi citada em nenhum dos livros. Seu nome é creditado em trabalhos que deram origem a sua atividade como ghost. A jornalista é autora de 17 volumes da coleção Aplauso, da Imprensa Oficial de São Paulo. Assinou livros com depoimentos de Paulo José, Irene Ravache, Tônia Carrero, Tony Ramos. “Foi a partir dessa experiência que a Ediouro me convidou para escreveu uma biografia como ghost. E o trabalho é semelhante ao da coleção Aplauso. Você tem que ouvir, ouvir, ouvir, prestar muita atenção à maneira como a pessoa fala, no jeito do biografado, para não começar a inventar história.” Ela leva de quatro a cinco meses para escrever uma biografia. São necessárias ao menos 20 horas de encontros. De acordo com Tânia, o preço médio que ela cobra é R$ 20 mil.

Outra jornalista experiente que abraçou a carreira de ghost, a paulista Nanete Neves não gosta de falar em valores. Mas diz que em média cobra R$ 30 mil. “Dos autores com quem trabalhei, em 90% dos casos assinei contrato de autoria com a editora em que cedi os direitos como autora”, comenta ela, que acredita que a função do ghost não seja apenas escrever. “Você ajuda até o cara a pensar. É uma relação de confiança e costumo conduzir o autor, dizendo que seria bom falar de uma maneira ou de outra. Porque, na hora que o texto ficar pronto, é ele que vai aprovar ou não.” Tanto Nanete quanto Tânia ministram cursos de ghost writing. “A primeira coisa que digo para os alunos é que se esqueçam do ego. Essa é a lição fundamental”, arremata Tânia.

O fantasma de Surfistinha


“Psicologia”. De posse desta senha, o jornalista Jorge Tarquini deu um telefonema. Já tinha levado um bolo da garota, então não acreditava que iria dar certo. Ao ser atendido por uma voz feminina, marcou um novo encontro. Dessa vez, conseguiu conversar com Raquel Pacheco, então conhecida como Bruna Surfistinha, a garota de programa popular na internet pelo blog em que relatava seus programas.

Daniel Spalato/Divulgação
Jorge Tarquini escreveu 'O doce veneno do escorpião' (foto: Daniel Spalato/Divulgação)
Tomaram um café e Tarquini fez a proposta. Escrever a história da garota classe média alta que havia largado o colégio, fugido de casa e começado a se prostituir. Depois desse, houve outros 20 encontros. Cada entrevista durava uma hora, que era também o tempo dos programas que Raquel fazia. O jornalista estreou como ghost writer com O doce veneno do escorpião – lançado em 2005 pela Panda Books, o diário vendeu 420 mil exemplares no Brasil, foi traduzido para 15 idiomas e lançado em 20 países.

“Não pensei no impacto que trabalhar no livro da Bruna poderia ter para minha carreira. Não tinha como fugir de uma boa história”, afirma Tarquini. Depois da estreia, ele escreveu outros quatro livros, sempre como coautor. Mesmo assim, em O doce veneno do escorpião seu nome não aparece na capa, tampouco na ficha catalográfica – está creditado na folha de rosto. De próprio punho, Raquel só escreveu a página final do livro, quando diz que resolveu largar a prostituição.

Escrever em primeira pessoa, de acordo com ele, não foi um problema. “Tive que descobrir como assumir a voz da Raquel. Nesse sentido, foi um trabalho de literatura”, diz Tarquini, que redigiu também as chamadas “páginas negras”, 36 páginas lacradas com descrição explícita de encontros sexuais. Ainda que estivesse atuando nas memórias de uma pessoa, Tarquini não deixou o lado jornalístico de lado. “Chequei as histórias que contava, locais, pessoas com quem cruzou, para não correr o risco de criar algo fantasioso.”

Terapia


Em Tia Rafaela (Panda Books, 2010), o ator e produtor teatral mineiro Davi Castro, hoje com 31 anos, conta o que aconteceu com ele há quase 20. Adolescente, depois da separação dos pais, mudou de cidade e começou a ter aulas numa nova escola. Conheceu Rafaela, sua professora de educação física, então casada, mãe e com 24 anos. Seduzido por ela aos 11 anos, Davi tornou-se pai aos 13. “Decidi escrever minha história em 2005, quando minha analista na época disse que escrever seria muito bom. ‘Quando você escreve, tira aquilo de você’.” Ao entrar em contato com a Panda Books para tentar lançar um livro, Davi já tinha escrito boa parte de seu drama. Foi convidado o jornalista Edison Veiga para dar o tratamento devido. “O que ele fez comigo foi questionar minha história. Se eu tivesse feito sozinho, o livro jamais teria ficado bom e prendido a atenção do leitor”, reconhece Davi.

Mão de JK


Nunca houve um ghost writer como Autran Dourado (1926-2012). Com uma obra literária relevante, o escritor mineiro fez história como assessor de Juscelino Kubitschek (1902-1976). Foram nove anos de convivência, primeiro quando JK governou Minas e depois como presidente da República. “Eu era apenas a mão que escrevia”, dizia, mineiramente. Pois em suas memórias, Gaiola aberta (Rocco, 2000), Dourado contou ter feito muito mais do que escrever os discursos do ex-presidente. Revelou que JK teria sofrido um infarto em seu período como presidente e dona Sarah quis esconder a notícia. Para despistar os repórteres, Dourado teria se vestido como presidente e acenado, de longe, para os fotógrafos, antes de embarcar num helicóptero.

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