Eleição de 2018 e luta por moradia marcam mostra de documentários

Edição 2020 do forumdoc.bh começa nesta quinta (19) em formato virtual e com exibição gratuita de filmes

Pedro Galvão 17/11/2020 04:00
ForumDoc/Divugação
Cena de Entre nós talvez existam multidões, de Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito, coprodução entre Minas Gerais e Pernambuco, que integra a Mostra Brasileira Contemporânea (foto: ForumDoc/Divugação)
Realizado desde 1997, o forumdoc.bh, um dos mais longevos festivais cinematográficos da capital mineira e um dos principais da América Latina entre os dedicados aos documentários, realiza sua 24ª edição a partir desta quinta-feira (19).  

Por causa da pandemia do novo coronavírus, a exibição dos 71 filmes selecionados será extraordinariamente on-line, assim como os debates e seminários previstos na programação. O formato é novo, mas a proposta do forumdoc segue igual: ressaltar a conexão entre o cinema e temas de urgência social, como a luta pelo direito à moradia e ao território, que ganha destaque especial neste ano.

O filme de abertura é Tentehar – Arquitetura do sensível, que foi filmado durante a eleição presidencial de 2018 no Brasil, quando Paloma Rocha e Luis Abramo percorreram diferentes localidades do país em busca de compreender melhor o que se passava. 

“O filme partiu de um desejo meu e da Paloma de investigar o que estava acontecendo no processo eleitoral. Decidimos não só receber informações, mas tentar entender o que estava acontecendo. Saímos a campo e, onde tinha um fato, íamos atrás, para então compreender o que é resistência”, afirma Abramo.

O cineasta diz que Tentehar não é “um filme sobre a eleição, mas sobre sensações  e sobre o que mobilizava as pessoas naquele momento”. Assim veio a aproximação com o povo Tenetehara - autodenominação dos Guajajaras - que aparecem nesse contexto. 

“Tivemos conversas longas com eles e formulamos uma questão sobre quem é e o que é ser civilizado no Brasil. Partimos por essa investigação e rodamos muito o Brasil, sempre com um olhar mais próximo às pessoas, procurando tecer conversas, quebrar o formato normal de uma entrevista”, descreve Abramo. 
Tenille Bezerra/Divulgação
Aleluia, o canto do Tincoã é um dos filmes que estarão disponíveis gratuitamente no site do festival (foto: Tenille Bezerra/Divulgação)

EXISTÊNCIA 

O longa é derivado de um outro projeto da dupla de diretores, Antena da raça, e inclui cenas do programa Abertura, feito por Glauber Rocha (1939-1981) na TV Tupi, no fim dos anos 1970. Filha de Glauber Rocha e Helena Ignez, Paloma argumenta que, ao recuperar a linguagem do programa Abertura, “no qual Glauber procurava justamente tirar essas intermediações entre entrevistador e entrevistado”, Tentehar descarta uma relação que “coloniza o entrevistado” ou que o “transforme em apenas um objeto de documentário, tirando sua própria existência”. 

Segundo a diretora, com essa característica o filme retoma “essa relação com o cinema brasileiro de um período em que se ia para a rua e se filmava as pessoas sem maquiagem”. As gravações na aldeia Tentehara foram feitas sem o uso de equipamentos como o microfone boom (operado a distância), por exemplo, segundo ela.

Entre meados de 2018 e janeiro de 2019, a produção circulou pelo interior de quatro estados brasileiros e também por metrópoles, como São Paulo e Brasília, onde a dupla realizou filmagens da posse do presidente Jair Bolsonaro. 

“É uma tentativa de entender o que acontecia com o Brasil pré-Bolsonaro, com o Lula preso, sem nenhuma intenção partidária. A intenção era política, para compreender e desmitificar alguns paradigmas que estavam colocados, como o de que todo bolsonarista é facista”, afirma Paloma. 

Para a diretora, “a maioria é mesmo, mas muitos são pessoas de classe média, gente pobre, que queria uma mudança. E aí há a história de um povo que perdeu a sua tradição, de uma cultura que se desconecta, entre outros motivos, por causa da questão da fé, com as igrejas neopentecostais. O suficiente para um ignorante e faminto entrar de cabeça nisso. Ao mesmo tempo, nesse povo perdido se encontram pessoas muito esclarecidas, com raciocínio muito intelectual sobre o que eles querem”.

Paloma Rocha e Luis Abramo participarão de um debate sobre Tentehar – Arquitetura do Sensível,  às 19h30 de quinta-feira (19), com transmissão ao vivo na plataforma do forumdoc.bh (www.forumdoc.org.br). O filme ficará disponível ao público, gratuitamente, das 12h do dia 19 às 23h59 do dia 22.  Salvo essa e outras três exceções que terão exibições limitadas por um período, todos os outros títulos em cartaz no festival ficarão disponíveis no site do dia 19 ao dia 28, divididos em três mostras principais. 
Luis Abramo/divulgação
Tentehar %u2013 Arquitetura do sensível, filme de abertura do evento, mostra viagem pelo Brasil durante a campanha presidencial de 2018, que é tema de outros títulos da programação (foto: Luis Abramo/divulgação )

TERRA 

A Mostra Temática “Esta Terra é a Nossa Terra” conta com 23 filmes nacionais e estrangeiros feitos há mais tempo. A maioria testemunha atos, processos históricos, movimentos, lutas ou conflitos em curso dentro do contexto do direito à moradia. Inclui, por exemplo, Narita: the Peasants of the second fortress (1971), de Shinsuke Ogawa, e Kanehsatake – 270 years of resistance (1993), de Alanis Obomsawin, além do brasileiro Mulheres no front (1996), de Eduardo Coutinho . 

Já a Mostra Contemporânea Brasileira exibe 36 filmes nacionais, de 14 estados, produzidos recentemente e selecionados entre centenas de inscritos. Um deles é a coprodução entre Minas Gerais e Pernambuco Entre nós talvez estejam multidões, de Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito. Resultado de uma imersão dos realizadores na ocupação urbana Eliana Silva, na região do Barreiro, em Belo Horizonte, o longa também tem as eleições de 2018 como pano de fundo para outras questões ligadas à luta popular. 

“Em nossos filmes anteriores, como Na missão com Kadu e Conte isso àqueles que dizem que fomos derrotados, já estavam processos de disputa urbana, luta das ocupações e produção de imagens em momentos críticos, de tomada da terra, manifestação. Já esse filme tinha vontade de falar dessa comunidade consolidada”, diz Aiano. 

O diretor explica que o longa foi feito quando a Ocupação Eliana Silva completou seis anos. “Nosso objetivo era construir um filme que desse conta de falar sobre como homens e mulheres fazem essa luta na cidade, mas com muita troca, com espaço para as experiências pessoais deles e mantendo essa energia da luta. Coincidentemente, é o período eleitoral de 2018, que elegeu Bolsonaro, e isso permeia o filme.”

Segundo Aiano, “a ideia não é uma obra de denúncia, mas que também dê respostas. Mais que falar sobre como o fascismo avançou no Brasil,  é mostrar como a resposta se constrói no cotidiano”. Sobre a escolha estética do filme, que tem poucas sequências e planos mais abertos, fixos, com durações mais longas, ele diz: “Sempre privilegiamos que o espaço fale e, como o filme é fruto de uma imersão de seis meses, buscamos, através da câmera, do diálogo, estabelecer um espaço de encontro e troca. Algo que é muito característico da ocupação urbana, que é esse lugar construído por todos, mas que permeia vidas individuais. O filme tenta trazer essa estrutura”. 

O terceiro recorte de exibição são as Sessões Especiais, composta por 10 títulos relacionados a questões historicamente trabalhadas pelo forumdoc, como as causas indígenas e filmes de caráter etnográfico e político marcantes. Coordenadora geral do forum.doc, Júnia Torres ressalta ainda a importância da forma dos filmes para o festival, além dessa forte unidade temática. 

“A questão das ocupações tem crescido, as mobilizações de moradia, direito à terra, pensando nas lutas urbanas, luta pela terra, lutas indígenas. São as principais questões que nos mobilizam hoje, mas nos interessa como o cinema lida com elas, a forma, independentemente de quem seja o realizador. Se mais novos ou mais acadêmicos, não importa. Buscamos filmes que tragam uma subjetividade, uma poética, uma invocação na forma.”

Júnia comenta que a organização do forumdoc já vinha se preparando há meses para a possibilidade de uma edição exclusivamente virtual. “A presença sempre foi muito importante. O forumdoc sempre foi um espaço de encontro. A sala de cinema não é substituível por filmes remotos, por causa da experiência sensorial que ela permite. Mas vamos experimentar o modo online e também encontros virtuais.”

Além de debates e webinários ao vivo, serão exibidas entrevistas gravadas com cineastas e está prevista a masterclass “O filme-ensaio e as margens entre as imagens”, com a cineasta portuguesa Joana Pimenta, no próximo dia 28, às 16h. 

Junia destaca a oportunidade da exibição doméstica para  “ampliar o alcance geográfico”. “Queremos que mais gente veja, que os filmes cheguem a mais lugares, mais públicos. É isso que tentamos, sem perder nossa principal característica, que é a possibilidade de reflexão e pensamento por meio dos filmes sobre o tempo presente, a história, o lugar em que estamos e a sociedade.”


forumdoc.bh.2020

24º Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte. Desta quinta (19) a 28/11, no site www.forumdoc.org.br. Gratuito. A programação completa está disponível na página do festival. 

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