CineOP encerra edição 2020 com debate sobre a Cinemateca Brasileira

Nesta segunda (7), especialistas em preservação discutem a crise que atinge a instituição responsável pela conservação de filmes que compõem a história da produção nacional

Mariana Peixoto 07/09/2020 04:00
Alf Ribeiro/Agência Estado
No prédio da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, estão abrigados para conservação 250 mil rolos de filmes. Cópias originais de clássicos do cinema estão depositadas na instituição (foto: Alf Ribeiro/Agência Estado)
Como evento cuja premissa é a memória e a preservação do audiovisual, a CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto abre espaço para discutir o imbróglio envolvendo a Cinemateca Brasileira. Nesta segunda-feira (7), último dia da 15ª edição do festival, que neste ano adotou o formato virtual, em decorrência da pandemia da COVID-19, será realizado o debate “Instituições de patrimônio em risco: Caso Cinemateca Brasileira”, a partir das 16h.

“As instituições culturais são muito frágeis no Brasil. O que ocorreu com o Museu Nacional (destruído após incêndio em setembro de 2018, no Rio de Janeiro) é o maior exemplo disso. O poder público não cuida do patrimônio, e a Cinemateca é a bola da vez”, afirma Carlos Augusto Calil. Ex-diretor da instituição (1987-1992), foi Calil quem iniciou a transferência da Cinemateca para sua atual sede, na Vila Clementino, no local que abrigava o Matadouro Municipal de São Paulo.

O professor e crítico de cinema participa do debate ao lado da preservadora audiovisual Débora Butruce e de Fabiana Ferreira, do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). O estado de abandono da Cinemateca se tornou público quando uma carta aberta, com um pedido de socorro, foi divulgada em maio. O documento denunciava que até aquele momento, a instituição não havia recebido nenhuma parcela de seu orçamento anual (R$ 12 milhões). 

REGINA DUARTE 
Dias mais tarde, o caso ganhou ainda mais vulto com o anúncio pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de que Regina Duarte, então saída da Secretaria Especial da Cultura, assumiria a Cinemateca. O que não se concretizou. Três meses e meio mais tarde, só há uma pergunta a ser feita: como salvar a instituição?

 “Hoje, a Cinemateca está sendo mantida com ‘aparelhos’. O governo federal fez contratações urgentes para sua manutenção. Até onde sei, há seguranças, brigadistas e pessoas para cuidar do ar condicionado. Mas ela está fechada, sem nenhum funcionário dentro, só estes prestadores de serviços”, afirma Calil. 

No início de agosto, a Cinemateca voltou a ser controlada pela União. Também no mês passado o Ministério do Turismo viabilizou contratos emergenciais, no valor de R$ 3,9 milhões, voltados, basicamente, para a manutenção do espaço.  

Seu acervo reúne informações de 42 mil títulos, produzidos desde 1897 até a atualidade (longas-metragens, médias, curtas, cinejornais, filmes publicitários, institucionais ou domésticos e séries). Estão armazenados na Cinemateca 250 mil rolos de filmes. Há ainda 1 milhão de documentos, cartazes, fotografias. Está sob a salvaguarda da Cinemateca a produção do Cinema Novo, de nomes pioneiros do cinema nacional, como Mário Peixoto e Humberto Mauro, das chanchadas de Oscarito, Zé Trindade e Grande Otelo.

O perigo maior da atual situação, de acordo com Calil, está no depósito de filmes inflamáveis. Todos os rolos de filmes da produção até 1951 são de nitrato de celulose. “Eles são altos combustíveis, continuam queimando até embaixo d’água. Como evitar isto? Com uma revisão permanente por equipes especializadas. O incêndio de 2016 ocorreu porque o governo federal não tinha contratado funcionários para a revisão do material. Em fevereiro daquele ano estava muito quente e uma só lata pegou fogo em tudo. Mil rolos de filmes se perderam ali.”

 A despeito da situação de extrema precariedade, Calil se diz impressionado com a mobilização que a crise do espaço suscitou. “Nunca tinha visto isto. Mobilizou desde a Câmara de Vereadores de São Paulo, a Câmara Federal, até associação de bairro”, ele diz.

Está previsto pelo Ministério do Turismo um novo chamamento público para a seleção de uma organização social (OS) para administrar a instituição. Desde 2018 a Cinemateca era administrada pela Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto. Inicialmente, o contrato da Acerp, resultado de uma parceria entre o (extinto) Ministério da Cultura e o Ministério da Educação, previa que ela ficaria à frente da instituição até 2021. 

Só que, em dezembro passado, o  então ministro da Educação Abraham Weintraub encerrou o contrato da Acerp, que também gerenciava a TV Escola. “Não sabíamos que o Ministério da Cultura tinha pegado carona em um contrato do MEC através de um adendo. Como o contrato principal da Acerp (com o MEC) caiu, o secundário também caiu, ficou sem cobertura jurídica.”

Sem contrato com a União, a Acerp demitiu, em meados de agosto, todos os 40 funcionários, responsáveis pelas áreas de preservação, documentação, difusão, atendimento, administração e tecnologia da informação.

Neste meio tempo, houve um iniciativa da Câmara de Vereadores de São Paulo em prol da Cinemateca. “Vereadores ofereceram emendas parlamentares a que têm direito, mas a proposta só pode ser aplicada se o governo federal aceitar, porque é um órgão público. O dinheiro, originário da Câmara de São Paulo, seria destinado para abrir a Cinemateca por três meses. Este é o tempo que se acredita ser necessário para a contratação de outra OS para gerir a instituição. Seria uma espécie de transição”, explica Calil.

Na opinião dele, o trabalho realizado na Cinemateca tem que ser retomado, “mesmo que provisoriamente, através desta parceria simpática entre o poder público municipal e federal”. Ele acredita que até o fim do ano uma situação menos precária esteja estabelecida.

“Esta situação tem que ser sólida, mas isto vai depender muito da escolha da organização social que administrará a Cinemateca. O chamamento público pode ser bom ou ruim. A Acerp foi um desastre, não entendia nada da Cinemateca e a rebaixou a um nível que não conheço igual. A instituição ficou praticamente sem visibilidade durante dois anos.”

FUNDAÇÃO 
Um sonho obstinado do crítico Paulo Emílio Sales Gomes (1916-1977), a Cinemateca foi fundada com o apoio de um grupo de intelectuais nos anos 1950. Foi uma instituição privada até 1984, quando foi incorporada ao governo federal. Integrou o corpo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) até 2003, quando passou ao organograma da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura.

“O grupo que fez a doação da Cinemateca estabeleceu cláusulas, entre elas a da administração compartilhada. Ela tem um conselho com representantes do poder público. Mas a predominância do conselho é da sociedade civil, cineastas, intelectuais, e são eles que determinam as diretrizes”, afirma Calil.

Só que este conselho não está atuante no momento. “A autonomia da Cinemateca é a principal questão a ser conquistada. Ela não pode ser ignorada pela autoridade de plantão. A nossa esperança, quando o conselho for restabelecido, é que  ela possa recuperar seu status. A Cinemateca Brasileira já esteve entre as cinco mais importantes do mundo. Foi um modelo em termos de instituição pública no Brasil. Decaiu muito e muito rapidamente”, lamenta Calil.  

APOIO DE CANNES
Presente no Festival de Cinema de Veneza, o diretor do Festival de Cannes, o francês Thierry Frémaux, deixou uma mensagem de solidariedade à Cinemateca Brasileira e questionou a atual política do governo do presidente Jair Bolsonaro. “Quero expressar meu apoio à Cinemateca Brasileira, ameaçada pelo atual governo”, disse ele em entrevista coletiva com seus pares, diretores dos sete maiores festivais de cinema da Europa, no sábado (5). (AFP)

INSTITUIÇÕES DE PATRIMÔNIO EM RISCO: CASO CINEMATECA BRASILEIRA
>> Debate nesta segunda (7), às 16h, na programação da CineOP (cineop.com.br). Com Carlos Augusto Calil, ex-diretor executivo da Cinemateca Brasileira, Débora Butruce, preservadora audiovisual, e Fabiana Ferreira, do Instituto Brasileiro de Museus. Mediação de Eloá Chouzal.

ENTENDA A CRISE DA CINEMATECA  

2013
Com Marta Suplicy à frente do Ministério da Cultura, a Cinemateca passa por auditoria e vê a suspensão no repasse de verbas federais para a entidade, o que causa a demissão de 43% do corpo de funcionários. O Conselho Consultivo da Cinemateca é desmontado.

2016
Em 3 de fevereiro ocorre o quarto incêndio da história da instituição. Perderam-se 1.003 rolos de filmes, referentes a 731 títulos. 

2018
A Cinemateca passa a ser administrada integralmente pela Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), uma organização social vinculada ao Ministério da Educação. O contrato de gestão, parceria entre o MinC e o MEC, seria inicialmente de três anos.

2019
Em dezembro, o contrato da Acerp não é renovado.

Maio de 2020
É publicada carta pública que denuncia que, até aquele momento, a Acerp não havia recebido um centavo dos R$ 12 milhões de seu orçamento anual. É anunciada a saída de Regina Duarte do cargo de secretária especial de Cultura e seu nome é indicado por Jair Bolsonaro para assumir a Cinemateca.

Julho de 2020
O Ministério Público Federal de São Paulo (MPF-SP) entra com ação contra a União em decorrência do abandono da Cinemateca. Pede, em caráter de urgência, a renovação do contrato da Acerp. 

Agosto de 2020
A Justiça nega o pedido do MPF e a Cinemateca volta para a União. A Secretaria da Cultura exige que a Acerp “entregue as chaves” da Cinemateca ao governo federal. Acompanhado da Polícia Federal, o secretário nacional do audiovisual substituto, Hélio Ferraz de Oliveira, vai no dia 7 realizar vistoria técnica. A visita resulta na informação de que contratos emergenciais estão sendo executados para preservação do espaço e de que haverá a abertura de um edital para que uma nova OS passe a administrar a Cinemateca. Os 41 funcionários contratados pela Acerp são demitidos.

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