Diretores transformam quarentena em tema de filme de terror

Longa 'Antologia da pandemia' reúne 13 curtas que traduzem a experiência do isolamento social na linguagem do terror

Fred Gandra* 13/08/2020 04:00
Fotos: Fantaspoa/Divulgação
Mancha na parede trata das paranoias acentuadas pelo isolamento social, segundo seu diretor (foto: Fotos: Fantaspoa/Divulgação)
Um gato que faz pacto com o demônio, uma mancha que ganha vida e mensagens estranhas recebidas durante a quarentena. Essas são algumas das histórias presentes no longa-metragem Antologia da pandemia, lançado neste mês nas plataformas digitais (iTunes, Google Play, Youtube Filmes, Vivo Play, Now e Looke). 

O filme é composto por 13 curtas-metragens de terror, todos produzidos durante o período de isolamento social em decorrência da pandemia do novo coronavírus. Os trabalhos são dirigidos por cineastas do Brasil, Argentina, Uruguai, Estados Unidos, Reino Unido e Chipre. A distribuição é da brasileira O2 Play.

“É uma forma de refletir sobre essa época que estamos vivendo”, afirma Beatriz Saldanha, de 34 anos, que fez sua estreia na direção com Jérôme: Um conto de Natal. O curta tem como protagonista um gato que faz um pacto com o demônio para conseguir sobreviver, abandonado no apartamento, desde que seu tutor morreu. “É como se ele tivesse uma ceia de Natal, mas, na verdade, quem ofereceu essa refeição foi o diabo”, diz a diretora. 

Segundo ela, o contexto atual colaborou para a construção da história. “Já é um filme de terror pronto praticamente (risos)”, comenta. Como nunca havia atuado antes, Beatriz preferiu não se arriscar na frente das câmeras e optou por “escalar” o gatinho Jérôme.

“Quando você atua sem ser uma atriz, você intensifica essa coisa do amadorismo. Não gosto disso.” Beatriz fez as gravações com celular, em seu apartamento. Mas ela diz que o maior desafio foi conduzir o bichano nas gravações. “Foi basicamente à custa de petisco mesmo”, conta. 

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Ás vezes ela volta homenageia Stephen King com a história de uma mulher que perde a irmã durante a pandemia


CRÍTICA 


A paulista trabalha com crítica de cinema desde a adolescência e, hoje em dia, administra um site especializado em terror. Suas referências são os diretores Dario Argento, David Lynch e Roman Polanski. 

“Sempre me atraiu muito essa coisa incômoda do terror”, diz ela. O resultado de sua primeira experiência na direção a deixou animada. “Fiz praticamente tudo sozinha, desde criar o roteiro, dirigir, executar o planejamento e a montagem.” O marido ajudou a conduzir Jérôme nas gravações, além de aparecer como defunto em uma das cenas.

Às vezes ela volta, de Matheus Maltempi, também presente na coletânea, é o terceiro curta do cineasta, de 25 anos, formado em comunicação social pela Unicamp. Ao lado de amigos, o cinéfilo lançou a produtora audiovisual Suco Excêntricos Filmes e contou com a ajuda da equipe na produção de Às vezes ela volta. O trabalho foi feito em padrão home office, com o uso de aplicativos como Skype e WhatsApp. Em dois dias, Matheus elaborou o roteiro e gravou o curta.  

A história gira em torno de uma jovem que perdeu sua irmã durante a pandemia. Impedida de sair de casa, a garota tenta superar o luto, até receber uma mensagem suspeita. “Ela recebe mensagem da irmã que acaba de falecer”, conta o diretor. 

A narrativa se desenvolve na tela do computador e do celular da protagonista. Essa estratégia garantiu que as gravações fossem feitas de forma segura durante a pandemia. Mas essa não foi a única razão pela qual o diretor escolheu esse modo de contar a história. Ele se inspirou nos filmes Search (2017) e Amizade desfeita (2015). “Sempre tive vontade de fazer filmes desse estilo, porque acho essa estética genial.”

O título do curta é uma referência ao mestre do terror Stephen King, autor de Às vezes eles voltam. Natural de Mogi Guaçu, no interior de São Paulo, Matheus conta que tinha medo dos filmes de terror, até começar a estudá-los na faculdade. 

“Eu vi no terror uma possibilidade de trabalhar com a fantasia. Daí, pulei de cabeça no gênero. Hoje, ele está presente todos os dias na minha vida profissional”, diz. Segundo ele, o curta foi importante para divulgar o trabalho da produtora. “Além de ganhar como melhor curta nacional no festival Fantaspoa at Home, o melhor foi ter o retorno das pessoas falando do nosso trabalho.” 

Daniel Pires, diretor de Uma mancha na parede, afirma que a inspiração para produzir o curta foram as paranoias impulsionadas pela qua- rentena. Na história, uma mulher que está em isolamento durante a pandemia passa a enxergar uma mancha ganhar vida na parede e se transformar no espírito de uma criança. 

“Nós já temos nossas paranoias do dia a dia. Quando ficamos sozinhos em casa, essas paranoias se acentuam. A mancha, de certa maneira, começa a ganhar vida por conta dessas loucuras da personagem”, diz o diretor, de 34 anos.

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Jérôme tem o gato do título como protagonista da história sobre um pacto com o demônio


MANCHA


A ideia do curta surgiu quando Daniel encontrou uma mancha atrás de seu guarda- roupas. Ele pediu ao amigo Ricardo Martins para escrever o roteiro e convidou Juliana Seabra e Miguel Teodoro para atuarem no curta, gravado em sua casa, ainda no início da quarentena. 

“Construí minha casa pensando que ela seria cenário de um filme de terror. Precisei só de iluminação, uma boa história e um elenco”, comenta o diretor, que fez também a edição e a pós-produção do curta. 

Apaixonado pelo gênero, Daniel escreve histórias de terror desde a adolescência. Em 2013, começou a produzir curtas para a internet. “Percebi que era um mercado que estava muito em alta”, diz. Apesar de ser um gênero pouco popular no Brasil, o diretor avalia que o terror tem público e profissionais de alta qualidade no país. 

“Embora a gente tenha nomes expressivos do terror (no Brasil), a grande massa brasileira conhece só conhece o Zé do Caixão. Mas, nós temos outras pessoas e muita coisa boa sendo feita.” Uma de suas maiores inspirações é o diretor brasileiro Dennison Ramalho, autor de Morto não fala (2018). 

Os filmes que Daniel Pires produz em geral ressaltam medos cotidianos. Ele sempre trabalhou utilizando equipamentos acessíveis. “Uma mancha na parede é um resultado muito positivo de algo que eu tinha em mãos. Uma casa, uma câmera, uma boa ideia na cabeça e amigos que toparam fazer.”

FESTIVAL 


A ideia de produzir um longa de terror com uma antologia de curtas feitos durante a pandemia partiu da Fantaspoa Produções, responsável pelo Fantaspoa – Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre. No contexto da pandemia do novo coronavírus, o festival optou por uma edição 2020 integralmente on-line. 

Para incentivar a produção, a Fantaspoa lançou um concurso de curtas, convidando diretores a gravar suas histórias da pandemia com os recursos disponíveis em casa. O Fantaspoa at Home selecionou 35 curtas-metragens brasileiros e estrangeiros, com limite de sete minutos de duração, que estiveram disponíveis ao público entre 1º e 10 de maio, no YouTube. 

Entre esses curtas, 13 foram selecionados para compor o longa Antologia da pandemia, com produção assinada por João Pedro Fleck, Fernando Sanches, João Pedro Teixeira e Nicolas Tonsho. 

*Estagiário sob a supervisão da editora Silvana Arantes

Antologia da pandemia

Disponível nas plataformas digitais iTunes, Google Play, Youtube Filmes, Vivo Play, Now e Looke

13 FORMAS DO MEDO
Confira os títulos que integram o longa

Às vezes ela volta, 
de Matheus Maltempi (Brasil)
Baldomero, 
de Martín Blousson (Argentina)
Eclosão, 
de Alejo Rébora (Argentina)
Estúpidemia, 
de Junior Larethian (Brasil)
Jérôme: 
Um conto de Natal, de Beatriz Saldanha (Brasil)
O último dia, 
de Guillermo Carbonell (Uruguai)
A mancha na parede, 
de Daniel Pires (Brasil)
Pique-esconde macabro, 
de Julio Napoli Filho (Brasil)
Psicopompo, 
de Giordano Gio (Brasil)
Quarentena sem fim, 
de Fabrício Bittar (Brasil)
Barata, 
de Emerson Niemchick (EUA)
Roleta russa, 
de Andreas Kyriacou (Chipre)
Desenterrado, 
de Karl Holt (Reino Unido)

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