Dilema sobre colégio de filho move a trama de comédia séria francesa

A partir da dúvida de um casal sobre o colégio mais adequado para um menino no ciclo fundamental, 'Luta de classes' faz um retrato agudo e bem-humorado dos desafios da tolerância e dos dilemas da esquerda

Silvana Arantes 24/10/2019 06:00
A2Filmes/Divulgação
Paul (Edouard Baer) e Sofia (Leila Bekhti) tentam convencer o filho Corentin (Tom Lévy) de que a escola pública é melhor do que as particulares (foto: A2Filmes/Divulgação)
Luta de classes, longa do francês Michel Leclerc que estreia nesta quinta-feira (24), no Cine Belas Artes (16h20, 21h), em Belo Horizonte, se disfarça de comédia para abordar diversos assuntos seriíssimos.
 
Com a história de um casal em dúvida sobre qual seria a escola mais adequada para o filho, o filme trata, numa perspectiva microscópica, do embate entre ética individual e valores coletivos. Em suma, Leclerc condensa no pequeno drama de uma única família a imensa dificuldade de se encontrar um denominador comum para a convivência (com padrões de civilidade e cooperação, entenda-se) entre indivíduos cujos credos, convicções políticas, status social e renda são divergentes.

O tom cômico se deve sobretudo ao caráter algo bufão do personagem do pai do garoto Corentin (Tom Lévy). O músico Paul (Edouard Baer), que na juventude integrou a hoje extinta banda de punk rock Amadeus 77, se orgulha de seu caráter rebelde e de sua atitude antissistema.



Ele faz apresentações gratuitas em apoio aos refugiados (100% desinteressados por sua música), se recusa a ter um emprego formal, assim como a aderir à instituição do casamento, embora viva sob o mesmo teto com Sofia (Leila Bekhti), a mãe de seu filho. Quando decidem vender o pequeno apartamento onde moram para comprar uma casa mais espaçosa no bairro em que Sofia cresceu, Paul não quer ter lucro com o negócio, para não se sentir um “especulador imobiliário”.

É depois da transferência do quarteto – Paul, Sofia, Corentin e Manon (Mona Berard), outra filha de Paul – para o bairro de Sofia, francesa de origem árabe, que a turbulência virá. Os pais matriculam o garoto na mesma escola pública em que Sofia estudara e onde teve uma formação suficiente para conseguir ingressar na universidade e se tornar advogada especialista em direito de família.

No entanto, a escola que Corentin encontra tem outra face, remodelada de acordo com as transformações da sociedade francesa. Quase todos os alunos pertencem a famílias de origem estrangeira; em sua maioria, muçulmanos cujas mães os esperam na porta da escola usando véu.
 
A2Filmes/Divulgação
(foto: A2Filmes/Divulgação)

A certa altura, Paul se dá conta de que seu filho “é o único branco” da escola. Na visão dos colegas de Corentin, o único branco e rico, algo que não lhes cai necessariamente bem. As demais crianças brancas do bairro estão todas matriculadas em escolas particulares, o que Sofia considera como “o rompimento do pacto republicano”, e ela se opõe ferozmente a isso. Até que Corentin começa a ficar impressionado quando seus colegas lhe dizem que ele irá para o inferno, já que sua família não é religiosa.

Luta de classes tem a habilidade de preparar bem a batalha. O espectador já está íntimo do que Paul e Sofia consideram ser seus valores mais arraigados, quando assiste ao casal se desequilibrar diante do embate do filho com um contexto que eles julgam hostil e do qual se sentem incapazes de protegê-lo. É da luta de Paul e Sofia com a realidade que emergem os grandes dilemas e as melhores cenas do filme, que nada têm de engraçadas.

Num jantar de aproximação que oferecem aos pais muçulmanos de um colega de Corentin, a conversa sai dos trilhos e termina com a retirada dos convidados, sentindo-se humilhados e ofendidos. A discussão então passa a ser entre Paul e Sofia.
 
Ele diz que ela foi condescendente com uma mulher que criticou impiedosamente sua carreira e seu modo de criar o filho e sugere que Sofia não teria reagido com a mesma brandura se os comentários tivessem partido de uma branca não muçulmana.
 
Sofia devolve as acusações a Paul dizendo que Paul se comportou como “o dominador falando com o dominado”. Está claro que uma turbulência que começou com a preocupação em comum com o filho trará para o primeiro plano as fissuras até então não reconhecidas na relação do casal.

Na hora em que tentam burlar as regras do sistema educacional para matricular Corentin em outra escola pública e têm seu estratagema descoberto pela diretora da instituição, ouvem dela que a esquerda é capaz de ser mais hipócrita do que a direita na sua desfaçatez de achar que as regras valem apenas para os outros.

No que talvez seja a mais otimista afirmação do filme, o final mostrará que a decisão mais sensata não partiu nem de Paul nem de Sofia, mas sim de Corentin. Luta de classes é uma ótima pedida para os que já há algum tempo cobram uma autocrítica da esquerda. Da esquerda francesa, é verdade. C'est la vie.

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