Daniel de Oliveira frequentou IML para protagonizar 'Morto não fala'

Longa de terror, que estreia nesta quinta (10) nos cinemas, tem trama centrada em funcionário de um necrotério que é capaz de ouvir as últimas palavras (e os terríveis segredos) ditos pelos corpos inertes

por Pedro Galvão 10/10/2019 06:00
Se você tivesse a habilidade de conversar com quem acabou de morrer, qual seria o assunto? Ao receber no necrotério a vítima de uma briga entre torcidas organizadas, Stênio, personagem de Daniel de Oliveira em Morto não fala, optou por criticar a irresponsabilidade do recém-falecido, que não pensou na família antes de se envolver em confusão por causa de futebol. Porém, os diálogos com quem já partiu podem oferecer possibilidades muito mais interessantes e até perigosas no desenrolar da trama do filme de terror dirigido pelo gaúcho Dennison Ramalho que estreia nesta quinta-feira (10) nos cinemas.

Funcionário do Instituto Médico-Legal (IML) da Zona Oeste de São Paulo, o protagonista cumpre uma rotina pesada de plantões noturnos movimentados por chegadas de corpos mutilados por balas, facadas e acidentes. Além de costurá-los e prepará-los para a autópsia, Stênio ainda tem que ouvir os últimos lamentos de todos eles.
A princípio, é um bom interlocutor, cordial, atencioso e consciente da premissa mais importante que envolve seu dom sobrenatural: segredos dos mortos jamais devem ser compartilhados com os vivos. Tudo muda numa noite em que o corpo debaixo do plástico era o de um conhecido de sua vizinhança, que confidencia uma informação capaz de interferir drasticamente em sua vida.

Globo Filmes/Divulgação
Título é a estreia em longas-metragens do diretor Dennison Ramalho, que há 20 anos se dedica ao gênero do terror em curtas (foto: Globo Filmes/Divulgação)

Morador da periferia paulistana, Stênio vive uma relação familiar turbulenta, especialmente com a esposa, Odete (Fabíula Nascimento), com quem atravessa uma forte crise no casamento. Ela faz questão de dizer que não suporta o cheiro do necrotério impregnado nas roupas dele. O trato com o filho Edson (Cauã Martins), de 11 anos, também é delicado, já que o garoto vem cometendo pequenos delitos e despreza o pai. Apenas a pequena Ciça (Annalara Prates) consegue criar alguma harmonia na casa.
 
Já atordoado pelo estresse profissional, por dificuldades financeiras e pela desarmonia de sua situação doméstica, tudo desmorona de vez para Stênio quando ele resolve interferir no “mundo dos vivos”, a partir de um segredo compartilhado pelo defunto, criando uma trilha de morte e destruição que atinge todos ao seu redor, incluindo o dono da padaria local, interpretado por Marco Ricca, e sua filha Lara (Bianca Comparato).

Baseada no conto homônimo do jornalista e escritor Marco de Castro, a trama não disfarça nem se esquiva da proposta central, que é o horror. Não faltam cenas de susto, sangue, cadáveres e perseguições dentro de uma narrativa fundamentada no medo e nos conflitos sobrenaturais.
 
Casamento em crise é um dos conflitos que desestabilizam o protagonista do filme
(foto: Casamento em crise é um dos conflitos que desestabilizam o protagonista do filme)
 
“Nossa principal missão era entregar um filme envolvente, uma experiência de ficção satisfatória, com um filme genuíno do gênero. Não é uma alegoria que apenas flerta com o horror. É um drama de terror, em primeiro lugar. Ainda que fale sobre alguns temas do nosso país, o ponto de partida nunca foi social”, afirma o diretor, que lança seu primeiro longa, depois de 20 anos dedicados a esse gênero cinematográfico, mas com títulos até então restritos aos curtas e à assistência de direção em Encarnação do demônio (2008), de José Mojica Marins, o Zé do Caixão.

Dennison Ramalho assinala que Morto não fala “não é um filme panfletário”, ainda que aborde, de certa maneira, mazelas sociais típicas das grandes cidades brasileiras. Violência urbana, desigualdade social, além das condições de trabalho precárias de profissionais como Stênio, estão em cena em meio à fantasia sombria. O diretor, que se diz “fascinado pelo ambiente do IML”, e Daniel de Oliveira participaram de um processo imersivo na fase de pré-produção correspondente à pesquisa de campo.
 
“Existe o fascínio por esse ambiente, onde atuam profissionais injustiçados, vistos por muita gente como um bando de doidos, sendo que exercem uma função muito importante e se esforçam para dar nó em pingo d’água em instalações públicas muito depauperadas e abandonadas”, diz Dennison Ramalho.

O ator mineiro revela que o “estágio” no necrotério ocorreu logo na primeira semana de trabalho. “Desde o início me dispus. Entendi que era preciso ver um corpo de perto, acompanhar, e você nunca sabe o que vai acontecer. Minha reação foi serena, porque fui com olhos de ator e descobri, conversando com profissionais, que eles olham os corpos como uma peça, não mais como uma pessoa, porque a vida já deixou de existir. Isso foi interessante por facilitar esse distanciamento. Se você se envolve e mentaliza, pode ser negativo”, diz Daniel de Oliveira, que acompanhou os processos cotidianos, como abertura de cadáveres, em unidades do IML em São Paulo e em Porto Alegre, onde o filme foi gravado, e chegou até a entrar em uma geladeira onde ficam os corpos.
 
Porém, nas cenas, boa parte delas filmadas em um necrotério cenográfico construído em estúdio, Daniel contracenou com esculturas, que posteriormente recebiam o rosto de outros atores e suas falas com o uso da computação gráfica. “Uma coisa que sempre me impressionou no IML é a paralisia da morte, daqueles corpos nus, entregues aos cuidados do legista, em absoluta impotência. Era muito curioso ver corpos de olhos abertos, imóveis, sem respirar. Isso tinha que estar no filme. Não seria possível colocar atores deitados, pedindo para controlarem a respiração e não piscar, até porque descobrimos que nossa carne vibra de um jeito diferente de um tecido morto. Então investimos nessa técnica”, explica o diretor.

Para os olhares mais sensíveis, a exposição de vísceras e sequências violentas pode incomodar, ao mesmo tempo em que não decepcionam os mais ávidos por cenas macabras. No entanto, para o intérprete do protagonista, as gravações foram tranquilas. “Num filme de terror, quando ele está pronto, com a trilha sonora, o susto é plantado. Na gravação não é assim, é preciso imaginar a situação de medo e criar um clima no set, e nisso o Dennison é craque”, diz o ator, cujo personagem é, ao mesmo tempo, alvo e mentor dos horrores que se passam na história.

“É um protagonista por quem criamos empatia, mas inocentes vão sofrer por causa dele. Ele dá um mau passo, numa falha humana, mas tudo faz parte de um pacote de pessoas que lidam com um universo triste, violento e perturbador, que nos ajuda a entender esse indivíduo rejeitado, invisível e desvalorizado”, aponta o diretor.

Exibido em dezenas de festivais pelo mundo e premiado em cinco deles voltados para filmes de fantasia, Morto não fala é mais um produto de uma boa safra do gênero no cinema nacional. Porém, Ramalho ainda vê resistência por parte do público às produções brasileiras de terror.
 
“Falo por mim, e isso não representa o ponto de vista do distribuidor nem dos produtores. Mas, se eu for pensar no que o público vai gostar, não faço mais filmes. Os resultados às vezes são muito desalentadores. E, nesse caso, não estou fazendo um curta. É um filme com grandes empresas envolvidas, com a Globo Filmes, mas me coloquei fazendo o filme que queria, desobrigado de pensar em retorno do público. Se ele for mal em bilheteria, ao menos é um filme sincero e genuíno. Se o público gostar, será exatamente por isso”, afirma.

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