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Diretor debate em BH filme sobre 'ato de transgressão ao capitalismo'

Em tupi-guarani, Toritama é a terra da felicidade. Mas é também a terra do jeans. E uma coisa está relacionada à outra. A cidade do agreste pernambucano abandonou o passado rural e se transformou em um polo industrial que responde por 20% da fabricação do jeans nacional. "Quando cheguei lá, me deparei com o rio poluído, a cidade visualmente poluída, aquele clima como se estivesse na Revolução Industrial do século 19, de todo mundo trabalhando o tempo todo. Mas o que mais me impressionou foi como as pessoas são felizes. Descobri esse viés singular. Que felicidade é essa que faz você trabalhar 13, 14 horas por dia?", indaga o cineasta Marcelo Gomes.



O diretor de Joaquim e Cinema, aspirinas e urubus, entre outros, participa neste domingo (7), no Cine Belas Artes, em Belo Horizonte, da pré-estreia do documentário Estou me guardando para quando o carnaval chegar, com o qual ele tenta responder à sua própria pergunta.
O longa tem previsão de estreia para a próxima quinta-feira (11), dentro da Sessão Vitrine, projeto de distribuição que lança um título por mês, com uma sessão diária a ingressos de valor reduzido.

Após a sessão de amanhã, haverá debate com o diretor e com o produtor do filme Ernesto Soto. O longa acompanha a rotina dos moradores de Toritama, onde boa parte dos habitantes são proprietários de pequenas fábricas de roupa caseiras, sobretudo jeans. Orgulhosos de terem seus próprios negócios, eles trabalham sem folga durante o ano inteiro. Uma das poucas exceções ocorre no carnaval, quando muitos vendem "o que têm e o que não têm", como eletrodomésticos, para poder curtir a folia na praia.

Há aproximadamente três anos, o pernambucano Marcelo Gomes, que conhece o agreste do estado desde criança (sua família é da região e ele também costumava acompanhar o pai, funcionário do governo, em suas viagens pelo interior), estava passando pelas redondezas, envolvido em outro projeto. A presença de imensos outdoors na beira da estrada chamou sua atenção. "Parecia que eu estava no interior dos Estados Unidos. Aqueles anúncios gigantescos de roupas.
O motorista que estava me levando comentou que era Toritama, conhecida como a capital do jeans. Até estranhei, porque, quando menino, ali era um lugar extremamente rural. E decidi correr atrás", conta.

O cineasta acabou descobrindo que o jeans é conhecido na cidade como "o ouro azul" por seu papel no aquecimento da economia. A relação dos moradores da cidade com o carnaval foi o que fez Gomes ter certeza de que queria fazer um filme a respeito de Toritama. "É um ato de transgressão ao capitalismo. Ralam o ano todo e,  quando se aproxima o carnaval, num ato desesperador, começam a juntar dinheiro para poder ir para a praia. Ali eu vi que tinha uma história. Gosto de fazer cinema das coisas que desconheço, porque preciso dividir minhas incertezas e minhas incompreensões com o espectador.
O cinema ajuda a entender a vida", afirma.

O nome do projeto foi tirado de um verso da música Quando o carnaval chegar, de Chico Buarque, e é interpretado no documentário pelos mineiros de O Grivo. Durante um ano e meio, Marcelo Gomes gravou o documentário, que mostra, além do cotidiano desses trabalhadores, seus sonhos e ambições. O diretor se deparou com personagens fascinantes, como o filósofo do agreste. No primeiro encontro com o cineasta, o trabalhador está escorado no chão, bem distraído. "Vai ficar sentado aí?", questiona o diretor. "Se não me der coragem, eu não levanto, não. Ishi, me pegaram no pulo do gato", responde o entrevistado. Em outro cenário, o "filósofo" começa a divagar: "A melhor aventura que tem é o mar, porque o mar não tem fim. O fim do mar é o céu". Outra figura curiosa é um morador de apenas 19 anos, pai de Júlia Beatriz, de 7 meses.
"Sou pai de família, mas sou solteiro. A moda é ter filho; não ser casado", diz.

DUREZA COM LEVEZA "O personagens são maravilhosos e adquiri uma intimidade muito grande com eles em pouco tempo. O tema do filme é duro, as histórias são duras, mas essas pessoas trazem um humor, uma leveza. Nas exibições fora do Brasil, ouvi muita gente dando gargalhadas", conta o diretor. Estou me guardando para o carnaval chegar recebeu menção honrosa do júri oficial da mostra Panorama, do Festival de Berlim, e o prêmio da crítica no Festival É Tudo Verdade.

O documentário dá ênfase especial ao som que envolve a produção do jeans – o ruído das máquinas de corte e costura, o do spray, o dos apliques no tecido e o rádio que os trabalhadores escutam. "É uma cidade ruidosa e, no carnaval, a gente mal ouve barulho, porque ela fica deserta e parece um cemitério. Ali eu me deparei com a Toritama de 40 anos atrás." Gomes diz que é curioso exibir o documentário no Brasil de 2019. "Estamos num momento em que se extinguiram vários direitos trabalhistas, em que se estimula a ideia do trabalhador autônomo. Essa coisa do trabalho intermitente, que você não sabe se vive para trabalhar ou trabalha para viver. Aquelas pessoas são donas do próprio negócio, mas se autoescravizam.
Fui a Toritama, descobri essa curiosidade do carnaval, me reencontrei com meu passado e, de repente, acabei fazendo um documentário existencialista."

Estou me guardando para quando o carnaval chegar
Pré-estreia do documentário de Marcelo Gomes, seguida de debate com o diretor. Domingo (7), às 19h, no Cine Belas Artes (Rua Gonçalves Dias, 1.581, Lourdes. (31) 3273-3229). Ingressos: R$ 22 (inteira).
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