Spike Lee volta ao patamar de seus grandes filmes com Infiltrado na Klan

Longa sobre policial negro que se disfarça para investigar supremacistas brancos lança um petardo anti-Trump

por Silvana Arantes 22/11/2018 08:00

Jessica Quinalha/divulgação
(foto: Jessica Quinalha/divulgação)

Há algo de Glauber Rocha (1939-1981) em Infiltrado na Klan, o novo longa-metragem do norte-americano Spike Lee, que estreia nesta quinta-feira (22) no Brasil. Em Terra em transe, realizado no calor do ambiente político do Brasil de 1967, Paulo Autran (como Porfírio Diaz) tem como uma de suas cenas memoráveis aquela em que projeta desafiadoramente a voz para dizer: “A luta de classes existe. De que lado você está?”.

Como já observou o crítico Ismail Xavier, o cinema de Glauber Rocha se desenvolve em torno da ideia do duelo. E aqui está o parentesco improvável entre o cineasta baiano e o diretor de Faça a coisa certa (1989). Infiltrado na Klan, o mais eloquente filme de Lee em décadas, é claramente um duelo do diretor com o presidente Donald Trump. Ou um duelo com o que Trump representa no cenário político americano, se concordarmos com a recente declaração de seu antecessor, Barack Obama, segundo a qual o apresentador de reality show alçado à Presidência da República não é a razão da profunda cisão que se observa na sociedade americana atual, mas sim o seu sintoma.

As cenas iniciais de Infiltrado na Klan trazem Alec Baldwin (o ator que desde a eleição incorpora a versão satírica de Trump no humorístico Saturday night live) cuspindo um discurso de ódio contra os negros e de indignação com decisões da Suprema Corte americana, como a que interditou a prática da segregação racial nas escolas (Caso Brown).

Esse introito nos leva à história particular de Ron Stallworth (John David Washington), que desafiou à sua maneira o racismo, tornando-se o primeiro agente negro da força policial de Colorado Springs. Na reconstituição da experiência de Stallworth, Spike Lee exibe seu talento e seu domínio do vocabulário cinematográfico que fez Hollywood ser o que é. Ou seja, a narrativa mantém o espectador permanentemente fisgado, com seus alternados momentos de drama, suspense, romance e ação.

No interior dessa embalagem “pop”, no entanto, Lee desenvolve um discurso com escolhas éticas e estéticas que colocam mais acento na dignidade, na resistência e na beleza dos negros do que na violência e na opressão de que são alvo. Da mesma forma, pontua que o ódio incontido dos supremacistas brancos tem origem na ignorância e no medo.

CRUZADA

O contraste entre a luta dos negros pela afirmação de seus direitos e a cruzada racista (contra negros e judeus) dos supremacistas brancos se delineia quando Stallworth, lotado na área de inteligência da polícia, passa a investigar as atividades da Ku Klux Klan. Ele se disfarça como um candidato a integrar a KKK e estabelece contato com a célula local da milícia por telefone. A partir do momento em que ganha a confiança dos membros da Klan e é convidado a participar de encontros, reuniões e rituais, ele envia em seu lugar o agente branco (e judeu) Phil Zimmerman – vivido por Adam Driver, o ator que não desaproveita nenhum papel.

 



A dinâmica da dupla formada por “policial bom/policial bom” que ganha a torcida e a preocupação do espectador é um grande ancoradouro da trama. Mas é bem mais do que isso. Com o recurso narrativo de um protagonista que se divide em dois, Spike Lee conquista do espectador uma identificação com o(s) herói(s) na qual não cabe nenhuma distinção determinada pela cor da pele. O cineasta constrói, dessa maneira, um argumento antirracista que prescinde de justificativas racionais e se concentra no âmago da questão – a capacidade do homem de sentir empatia, ou seja, a característica que nos torna propriamente humanos.

Da porção do romance que se desenvolve entre Stallworth (o original) e a líder estudantil do movimento negro de quem ele se aproxima em missão profissional (com a verdadeira identidade encoberta e o uso de microfones escondidos) surgem as questões – ainda irresolvidas – sobre a legitimidade e a eficácia das estratégias de enfrentamento e combate ao racismo.

Depois de contar apaixonada e apaixonantemente uma história intensa, Spike Lee finaliza seu longa com um salto para o presente, inserindo imagens documentais da trágica confrontação ocorrida em Charlotesville (Virgínia), em 2017, durante uma passeata de supremacistas brancos.

Assim, Spike Lee dissipa toda dúvida (se é que havia alguma) de que Infiltrado na Klan é um filme de um cineasta preocupado com seu tempo, sobre o tempo presente.



Consagração em Cannes

Faça a coisa certa (1989) foi divisor de águas na carreira de Spike Lee. A produção aliou público e crítica na história que mostra como pequenos atritos têm o poder de explodir a tensão racial dos Estados Unidos. Não faltava humor, a despeito da contundência do tema – algo que ocorre também com Infiltrado na Klan.

Faça a coisa certa foi indicado a vários prêmios, além da Palma de Ouro em Cannes. Não levou nenhum troféu no festival francês – algo que Lee conseguiu dois anos mais tarde, com Febre na selva (1991), filme com tom mais dramático (arquiteto negro casado tem caso com uma colega de trabalho, italiana).

Só em maio deste ano Spike Lee voltou a Cannes com um novo trabalho. Saiu consagrado da Croisette. Infiltrado na Klan lhe deu o Grande Prêmio do Júri. O longa, já na primeira exibição, foi aplaudido de pé.

A força da narrativa ganhou ainda mais peso com a fala do diretor durante o festival francês: “Nós temos um sujeito na Casa Branca – não vou dizer o nome dele –, que, no momento decisivo não apenas para a América, mas para o mundo, teve a chance de dizer: ‘Nós estamos do lado do amor, não do ódio’”, criticou Lee.

OSCAR

Considerado o melhor filme de Spike Lee em muitos anos, Infiltrado na Klan é apontado como uma das produções de peso no Oscar 2019, ainda que o cineasta tenha protagonizado o boicote à premiação, em 2016, devido à ausência de negros entre os candidatos.

Razões, além dos méritos do próprio filme, não faltam: a própria importância de Lee (que recebeu um Oscar honorário em 2015) e sua relevância entre os cineastas afro-americanos; narrativa inspirada em uma história real (algo que a Academia de Hollywood adora); e Jordan Peele (de Corra!), hoje queridinho da indústria, como um dos produtores.

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