"Manipulamos o espectador, e ele gosta disso", diz criador de La casa de papel

Álex Pina explica o que atrai a audiência da série de língua não inglesa mais vista na Netflix diz ter "carta branca" para a terceira temporada, que estreia em 2019

por AFP 24/06/2018 08:00
NETFLIX/DIVULGAÇÃO
Responsáveis pela criação da série dizem que a mensagem política é a última de suas prioridades entre os temas que querem tratar na trama sobre o roubo da Casa da Moeda de Madri (foto: NETFLIX/DIVULGAÇÃO)

Com a terceira temporada em preparação, La casa de papel, a série de língua não inglesa mais vista na Netflix, é um autêntico fenômeno mundial, cuja força reside em “confundir moralmente o espectador”, diz seu criador, Álex Pina. Quando a empresa de streaming americana passou a disponibilizar em seu catálogo, no ano passado, essa série espanhola sobre um espetacular roubo à Casa da Moeda da Espanha, em Madri, transformou a produção, inesperadamente, em um sucesso. Anteriormente, sua exibição no canal de televisão espanhol Antena 3 havia atraído uma audiência limitada.

Apoiada em uma simbologia forte, como a canção de resistência Bella ciao, à qual a série deu uma segunda vida, ou as máscaras de Dalí que os assaltantes usam e que são vendidas aos montes nas ruas, La casa de papel prende até famosos, de Neymar a Alejandro Sanz, que pediu um DVD antes de sua estreia na Netflix, segundo Pina.

Produto paradigmático de uma era em que as séries são consumidas em qualquer lugar e a qualquer momento, a produção espanhola atrai os telespectadores com o ingrediente viciante do suspense e o desejo desses de entrar na vida fictícia e real de seus protagonistas. São ladrões de bom coração com nomes de cidades como Nairóbi, Denver e Rio e reúnem hordas de fãs nas redes sociais. Uma das atrizes, Úrsula Corberó (Tóquio), bate recordes, com 5,4 milhões de seguidores no Instagram.

À margem do Festival de Televisão de Monte Carlo, em Mônaco, Pina e a roteirista e coprodutora Esther Martínez Lobato falaram sobre a série e sua terceira temporada, que estreará em 2019, para a qual, garantem, a Netflix lhes deu carta branca.

Sua série se inspirou no movimento de protesto dos Indignados na Espanha. Até que ponto estão chamando o público à resistência?
Martínez -  A mensagem política é a última coisa de que queremos falar na escala de coisas que queremos abordar. Temos uma quadrilha de desencantados, de perdedores, uma “Tóquio” que não tem aonde ir, uma “Nairóbi” que tem uma história tremenda, todos os personagens têm uma realidade muito dura, onde você se une a eles porque quer que ganhem.

A Netflix não divulga dados sobre audiências. Vocês conhecem seu público?
Martínez - O perfil não está muito claro, porque muita gente gosta (da série). A Netflix não dá dados, mas hoje em dia de alguma forma estes não são necessários, porque as redes sociais te situam em lugares: a comunicação é direta. Pina - Brasil, Argentina, França, Turquia são (os países) onde parece que temos mais sucesso.

Então é nas redes sociais que encontram sua audiência? 
Pina - As redes sociais te dão muita informação, mas havia, por exemplo, uma grande parte das pessoas que queriam matar Arturo e que realmente o odiavam. No entanto a Netflix fez uma amostra entre os fãs da série e uma das coisas mais fascinantes é que as pessoas gostam de odiar Arturo. Há mensagens muitas vezes que são contraditórias.

No entanto, Arturo, um refém, é um dos mocinhos.
Pina - Estamos confundindo o espectador moralmente. Ele não sabe se “Berlim” é um cara que se deve odiar, é realmente misógino, desprezível, cruel e, mesmo assim, você o adora. Estamos mudando o foco moral e manipulando o espectador, e acho que o espectador gosta que façamos isso.

Esta terceira temporada produzida pela Netflix é arriscada, considerando como acaba a segunda?
Pina - Estivemos dois meses pensando se podíamos abrir (a série). Encontramos uma ideia que achamos que é maravilhosa, fomos à Netflix e tudo foi implementado. Vamos tentar trabalhar a fragmentação, a desordem do tempo. O espectador é cada vez mais especialista, vê muitíssimas horas de ficção por dia. Pode ser que cheguemos a lidar com cinco tempos em um mesmo capítulo.

As série representam uma séria concorrência para o cinema?
Pina - Sim. Noto como espectador que o que está acontecendo com as séries é que, quando vou ao cinema, parece que está ficando como o irmão mais novo. As séries são a nova literatura por fascículos, vejo isso em casa com a minha filha, que não lê, vê séries.

A Netflix não divulga dados sobre audiências. Vocês conhecem seu público?
Martínez - Vamos passando por fases na narrativa. Há épocas em que era mais interessante a comédia, o lúdico, os gêneros e, finalmente, chegamos a um lugar onde as pessoas estão muito interessadas na vida dos personagens. E as possibilidades de uma série que tem ao menos 10 capítulos são infinitamente maiores do que as que um filme pode ter em 90 minutos. ( Anna Pelegri, AFP)

AS CHAVES DO SUCESSO

Para além da qualidade, o sucesso de uma série depende principalmente de entrar em consonância com a sociedade contemporânea, como é o caso de La casa de papel, uma crítica ao sistema liberal, afirma a historiadora Marjolaine Boutet. A seguir, a especialista francesa em séries de televisão lista os aspectos que  explicam o furor gerado pela série espanhola difundida pela Netflix e cuja terceira temporada estreará em 2019.

» QUEBRA DE CÓDIGOS
Inspirada nos filmes de roubos como Onze homens e um segredo, La casa de papel quebra “todos os códigos” do gênero porque, em vez de “ir muito rápido”, acontece praticamente hora por hora. Além disso, não roubam o dinheiro da Casa da Moeda, mas fabricam o próprio “em uma quantidade tão monumental que não tem nenhum sentido”. O espectador espera uma série de violência e se vê diante de uma “reflexão sobre a sociedade e como podemos nos reinventar”.

» CONTRA O SISTEMA 
Denuncia o poder do dinheiro e faz eco do sentimento antiliberal. “Da direita à esquerda, há uma rejeição do sistema atual, como demonstram as últimas eleições no mundo.” Os próprios candidatos, surgidos do populismo, se apresentam como antissistema para conquistar o eleitorado.

» ODE AO ESPÍRITO DE EQUIPE
Existe um cérebro, o Professor, que prepara toda a equipe de assaltantes, mas que também “os conscientiza de que vão fazer aquilo por uma causa, não somente para seu interesse particular”. É a “busca de um compromisso em uma causa comum, contra o individualismo, o capitalismo”. Este componente interpela sobretudo os jovens.

» ODE À INTELIGÊNCIA E AO AMOR
O Professor é um homem sumariamente inteligente, que tem tudo calculado no plano intelectual, mas que “não havia previsto” se apaixonar por Raquel, a negociadora da Polícia que tenta salvar os reféns.

» A RIQUEZA DOS PERSONAGENS
Os personagens com nomes de cidades como “Berlim”, “Nairóbi” e “Tóquio” têm muitas facetas. “Sua riqueza vai sendo descoberta episódio após episódio”.

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