Diretor francês François Ozon comenta o controverso 'O amante duplo', seu filme mais recente

Cineasta fala sobre o mergulho que fez na leitura de psicanálise para realizar o longa

por Ricardo Daehn 24/06/2018 08:00
Califórnia Filmes/Divulgação
Jérémie Renier e Marine Vacth são os protagonistas de O amante duplo, em cartaz em Belo Horizonte (foto: Califórnia Filmes/Divulgação)

Quem alardeia ineditismo no blockbuster Oito mulheres e um crime por causa das posturas femininas, do envolvimento de mulheres com crime e do elenco estelar não está levando em conta 8 mulheres, filme estrelado por Catherine Deneuve, Isabelle Huppert e Fanny Ardant, feito há 16 anos. A citação do dèjá vu causa risos em François Ozon, autor do filme, hoje com 50 anos e um dos mais respeitados diretores da França.

“Sou um diretor que ama as mulheres, então, me sinto instigado a chegar ao universo feminino nos filmes. As estrelas de cinema com quem trabalho, geralmente, se provam mais inteligentes do que os astros. Não tenho medo de, com elas, invadir novos campos: mulheres são menos ególatras do que os homens. Ter trabalhado com estrelas como Daniele Derrieux foi um verdadeiro sonho: quando elas te compreendem, seguem, em conjunto, a direção”, explica o diretor, ao telefone.

Conhecer profundamente a estrela do mais recente filme O amante duplo, que estreou quinta e foi atração do Festival Varilux foi fundamental. “A relação de confiança que tenho com Marine Vacth e com Jérémie Renier (astro do longa) pesou, junto à química real que ambos têm em conjunto. Já tínhamos trabalhando antes: eles não estavam assustados com as cenas íntimas”, explica Ozon, que carrega no currículo 11 indicações na tríade de ouro dos festivais de cinema (Cannes, Berlim e Veneza).

Terapia e intimidade trazem estofo para o enredo de O amante duplo. “Nunca recorri à terapia. Entretanto, li uma infinidade de textos e livros a respeito. Trata-se de uma vasta abordagem que renderia muitos filmes. É uma literatura que capta fartos comportamentos estranhos de pessoas que estão doentes na nossa sociedade. Sempre gostei de ler, desde que era um jovem estudante. Afunilei o interesse pelo analisar. Foi um grande desafio introduzir isso em O amante duplo por meio de 10 minutos de uma sessão de terapia encenada. Fiquei preocupado em não aborrecer o público. Tentei fazer de maneira excitante de ser visto”, comenta o realizador.

Ao conferir o filme, fica impossível desviar os olhos das referências de cinema – Alfred Hitchcock, em especial Um corpo que cai, e Marnie, entre outros. “Conheço muito a obra dele e Hitchcock foi um verdadeiro mestre para mim. Quando você conhece uma obra do avesso, é tudo muito próximo. Ao ter dúvidas no set, recorria sempre à questão: o que teria feito Hitchcock? Ele é o rei dos diretores, na minha concepção”, diz. Romper a barreira clássica do último filme (Frantz, em preto e branco) e chegar a um trabalho controverso como O amante duplo foi algo premeditado.

“Com o choque imposto pelo filme, entrei em contato com meus medos. Sabia da possibilidade de o longa não trazer consenso junto ao público”, diz Ozon. “A sociedade sempre tem tabus a serem quebrados. Fico ao lado dos personagens, sem imposição de julgamentos. Muito frequentemente, os tipos com os quais lido buscam formar a própria identidade.” No novo filme, ele trata da investigação que uma moça faz dentro do próprio corpo.

“A personagem tenta descobrir o que carrega dentro de si, até mesmo no plano físico. Logo de cara, há a cena da fusão da vagina exposta e do olho dela se abrindo. É algo importante e revelador – precisamente diz sobre o que tratará o filme”, explica o cineasta.

Em sua filmografia, por sinal, não faltam pequenos escândalos que cercam O refúgio (2009), com uma grávida dependente de drogas; Sitcom – Nossa linda família (1998), cortante exame da instituição familiar; e O tempo que resta (2005), que acompanha a degradação física de um jovem gay. “Gosto de abrir os olhos do público para situações diferentes. É preciso trazer novidades, quando você vai ao cinema, você quer aprender algo. Claro, não da mesma forma como foi na escola (risos). Você vislumbra descobertas”, afirma o diretor.

Com transformações em curso na França atual, Ozon lamenta que drogas não estejam legalizadas. “É uma pena, por isso temos tantos traficantes. Deveriam criar impostos, como é feito com o álcool. Por aqui, temos muitas pessoas aflitas (risos). Somos adultos e seria interessante ter uma nova política. Mas ainda não somos tão corajosos em algumas instâncias”, opina.

Moldada sob a adesão de infinitas estrelas francesas de ponta, a carreira do diretor caminha para sistemática pontuação de vanguarda. Muitas atrizes são verdadeiras amigas. Com cada uma, conta ter tido relação diferenciada. Mas talvez salte o maior apreço por Charlotte Rampling, que esteve nos longas Jovem e bela, Swimming pool, Angel e Sob a areia. “Ela foi a primeira a depositar confiança em mim. Pelo êxito de Sob a areia (2000) na França, outras estrelas passaram a me procurar. Elas pensavam: ele é capaz de representar belos retratos de mulheres”, arrisca.

Privilegiado mesmo, Ozon se define pela convivência com Jeanne Moreau (morta há quase um ano), que esteve em O tempo que resta. “Fui muito próximo a Jeanne – ela carregava o espírito de uma verdadeira avó. Jeanne era muito generosa, amava o cinema e adorava repassar as experiências dela. Trabalhou com a nata: Truffaut, Orson Welles, Louis Malle e Fassbinder! No fim da vida, ela estava só – o que era muito triste. Fez como muitas estrelas: preferiu estar só na finitude. Parou de ver as pessoas e ficamos com a sensação de que optou pelo cemitério de elefantes”, conclui.

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