Mergulho junto ao povo indígena ajudou a 'traduzir' a alma de 'Chuva é cantoria na aldeia dos mortos'

O Estado de Minas conversou com a diretora Renée Nader sobre os desafios de filmagem

por Márcia Maria Cruz 26/05/2018 10:40

 Renée Nader Messora/Divulgação
Produção foi filmada em Pedra Branca, no Tocantins, ao longo de nove meses: fidelidade à língua local e, especialmente, ao mundo sob o olhar nativo (foto: Renée Nader Messora/Divulgação)

Parte do Brasil desconhecido foi revelada no Festival de Cannes numa língua pouco ou nada familiar aos brasileiros, o krahô, presente em Chuva é cantoria na aldeia dos mortos, vencedor do Prêmio do Júri, da mostra Um certo olhar. A produção tem no seu DNA a Entre Filmes, sediada em Belo Horizonte, do realizador Ricardo Alves Júnior, responsável pela coprodução com Thiago Macedo Correia. O Estado de Minas conversou com a diretora Renée Nader sobre os desafios de filmagem. Chuva é cantoria será apresentado em festivais no Brasil, com previsão de estreia no circuito comercial no ano que vem.

Foi em 2009 que Renée chegou à aldeia Pedra Branca, próximo a Itacajá, em Tocantins, por indicação do amigo de faculdade Lincon Fonseca. A convite da família do indígena, Lincon faria documentário sobre fim de luto de liderança Krahô. Renée se ofereceu para fotografar a produção. A viagem foi rápida, com permanência de uma semana. Mas tempo suficiente para que ela ganhasse nome indígena, batismo naquela cultura.

A experiência definidora motivou Renée a retornar, agora na elaboração do projeto Cinema de aldeia, inspirado no Vídeo nas aldeias. A ideia foi sugerida pelo antropólogo Felipe Komenati, que lá vivia. Durante três meses, em 2012, ela e mais três pessoas percorreram aldeias promovendo oficinas de audiovisual. Acompanharam festas, cantigas e histórias. Daí, deixaram equipamentos de filmagem para que os próprios indígenas pudessem experimentar a linguagem do cinema. Primeiro passo para formação do coletivo Mentuwajê Guardiões da Cultura.

Renée voltou diversas vezes e foi ampliando as temporadas, até que, em 2013, deixou a casa em São Paulo e alugou uma “casinha” em Itacajá para que pudesse desenvolver o Mentuwajê do Olhar e Sentir, projeto em que apresenta brincadeiras audiovisuais na escola da aldeia, com professores indígenas e crianças.

 Renée Nader Messora/Divulgação
Produção foi filmada em Pedra Branca, no Tocantins, ao longo de nove meses: fidelidade à língua local e, especialmente, ao mundo sob o olhar nativo (foto: Renée Nader Messora/Divulgação)

OFICINAS

A relação não começa e não se encerra com Chuva é cantoria. Atualmente, os diretores colaboram  com a Associação Centro Cultural Kajrè. Um dos projetos desenvolvidos é o acervo digital composto de materiais audiovisuais de todos os que visitaram o lugar. Em 10 anos, foram de antropólogos a historiadores, estudantes, músicos e até palhaços. As primeiras oficinas ocorreram nas aldeias Cachoeira, Pé de Coco, Manoel Alves e Pedra Branca, levantando o interesse de jovens com idades entre 14 e 20 anos. Foram indicados pela comunidade grupos de 10 deles para participar.

Renée viu os adolescentes crescerem, se casarem e até mesmo terem filhos. Uma das jovens do grupo, Ilda Patpro, participou de concurso de filme-minuto do Tocantins e ganhou o prêmio de melhor filme com vídeo que mostrava o bebê da jovem comendo buriti. Entendeu que podia eternizar o crescimento de seus filhos – tem três. Esses jovens cinegrafistas continuam registrando festas, histórias e cantigas. Mais do que isso, passaram a usar a linguagem do vídeo para denunciar a falta de diálogo e arbitrariedade com que os “braços institucionais” atuam.

O diretor João Salaviza chegou à aldeia Pedra Branca em 2014, quando fez com Renée exercícios de imagem. Nesta temporada, a comunidade decidiu que queria produzir telejornal com periodicidade semanal sobre as novidades da aldeia. Foi criado o Kri Kam Ampo Te Jumã Xà (numa tradução literal, o que acontece na aldeia). O noticiário era gravado de segunda a quinta, editado na sexta, dia em que era projetado para a comunidade ao entardecer. Todos os assuntos eram definidos pelo grupo, responsável por indicar quem faria cada gravação. O protagonista de Chuva é cantoria, Ihjãc, era um dos responsáveis pelo jornal krahô.

Luto

Chuva é cantoria foi rodado em nove meses na aldeia Pedra Branca, em negativo de 16mm. A história gira em torno de Ihjãc, jovem do povo krahô, que, depois de se encontrar com o espírito do pai, falecido, vê-se obrigado a realizar a festa de fim de luto. Embora o filme tenha elementos documentais, é uma ficção. Na produção, Renée e João construíram relação de amizade com a etnia. A dupla tinha a convicção de que a obra não poderia se impor à realidade local e levou o antropólogo Vitor Aratanha, sem experiência com cinema, para fazer a captação do som. Foi fundamental. Vitor fala a língua krahô. Também foi integrado à equipe o melhor amigo do Ihjãc, Xotyc.

TRADIÇÕES EM MG

Foi lançado nesta quinta (24) o edital de Premiação das festas tradicionais das comunidades indígenas e grupos tribais. Serão distribuídos 13 prêmios, no valor de R$ 15 mil, totalizando R$ 195 mil para iniciativas de promoção de tradições expressas através de jogos, música, danças e diversas atividades culturais, considerando a importância das festividades para manter os costumes e os valores dessas comunidades. Promovido pela Secretaria de Estado da Cultura pela quarta vez, o edital se destina a 13 povos aldeados. As inscrições podem ser feitas até 9 de julho. O resultado será divulgado em 3 de agosto. Mais informações: www.cultura.mg.gov.br.

TRÊS PERGUNTAS PARA...

 

Renée Nader Messora - diretora

 

 

Todo o filme é na língua krahô. Como foi seu contato com essa língua?

O Brasil indígena tem mais de 150 línguas e dialetos. O krahô pertence ao tronco macro-jê e à família jê. Nós, brancos e estrangeiros, ignoramos essa pluralidade por completo. Para nós, é só o tupi, e olhe lá. Não falo, e entendo muito pouco da língua krahô. Tem a limitação que, para mim, é a mais abismal. A língua dá conta da maneira de olhar para o mundo e também do lugar desde onde se olha. Não é só questão de semântica, de gramática. É filosófico. Quando você filma uma língua que não conhece, precisa confiar naquelas presenças que você filma. Gosto de pensar na ideia de horizontalidade forçada. A dinâmica de poder, que é estabelecida quando se aponta uma câmera a um sujeito, fica comprometida quando as palavras ditas não podem ser compreendidas. Nós, diretores, já não podemos controlar tudo. Aí, os pequenos milagres podem emergir. Vínhamos com as ideias, o Ihjãc traduzia de maneira que fizesse sentido para ele. Mas isso só ia ser redescoberto no processo de tradução. Tivemos ótimas surpresas, sequências inteiras que tiveram sentido amplificado através da fala dos personagens.

Como foi feita a tradução?

Alinhamos durante as filmagens. O Vitor Aratanha, com a ajuda da sua companheira, Amxykwyj, fazia a tradução. Era bem básica. Servia para que pudéssemos ter a certeza de que os diálogos faziam sentido na narrativa. Com a versão final de montagem, aproveitamos para formar uma equipe e fazer uma tradução mais fina. Trabalhamos durante dois meses com a Ana e o Ian, amigos antropólogos (e profundos conhecedores da estrutura da língua). Com Vitor e equipe de indígenas identificaram conceitos-chave que se repetiam e propuseram maneiras de amplificar esses conceitos. Por exemplo, a ideia do mecarõ. O mecarõ é o duplo, que pode significar o reflexo na água, no espelho, a sombra, a fotografia e o filme, os espíritos. Decidimos não traduzir. É conceito tão amplo e profundo que qualquer tradução seria uma traição, um reducionismo que não aportaria nada à narrativa – e menos ainda à maneira do krahô de olhar para as coisas.

A violência contra os povos originários é muito grande no Brasil. Em que medida a demarcação das terras indígenas é importante para a manutenção da cultura?

Vou citar pessoa genial, o Viveiros de Castro. As terras que os índios ocupam não são sua propriedade, são eles que pertencem à terra. Isso os define. A demarcação é o ponto de partida para se pensar a manutenção da cultura e, antes que isso, para se pensar a (r)existência desses povos. Diferentes governos demonstram desconhecimento profundo e vêm, sistematicamente, aniquilando essas possibilidades de ser. Esse processo está acelerado. A bancada ruralista assumiu o controle do Congresso e o governo ilegítimo do Temer faz qualquer tipo de atrocidade para se manter. Em vez de avançarmos na demarcação de todas as terras indígenas, temos que gritar para não perder os pouquíssimos direitos conquistados nesses 30 anos.

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