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Após sete anos, Lars von Trier volta a Cannes com filme sobre serial Killer


Para quem acompanha Lars von Trier no Festival de Cannes desde o choque de Ondas do destino (1996), é certamente reconfortante ver o grande diretor de volta ao festival que tem sido sua casa. Há sete anos, chamado de nazista por declarações consideradas antissemitas durante a coletiva de Melancolia – disse que entendia Adolf Hitler –, Von Trier virou persona non grata e foi banido da Croisette. Seu filme seguinte, Ninfomania, estreou no Festival de Berlim.

Ei-lo de volta a Cannes, mas algo se passou, e terrível. A assessora informa: “Ele sempre foi ansioso e há tempos sofre de depressão. Toma drogas cada vez mais pesadas e drogas para tentar minimizar os efeitos – esse tremor das mãos, os movimentos rígidos, a fala entrecortada.” Dir-se-ia doença de Parkinson.

Mas a cabeça do cineasta dinamarquês de 62 anos está lúcida. “Depois do sexo de Ninfomaníaca, um bom tema para causar é a violência. Diz respeito a todos, no atual estado do mundo. Os assassinos em série sempre me interessaram, o funcionamento de sua mente.

Só falta agora me chamarem de serial killer, o que não sou, claro. Mas, nesse mundo de fake news, ninguém está nem aí para julgamentos morais. Se ajudar a vender jornais e criar sensacionalismo, está valendo.”

Na ficção de seu novo filme, The house that Jack built, o personagem mata mais de 60 pessoas, a maioria mulheres, ao longo de 12 anos. A seguir, Lars Von Trier fala sobre o filme.


Depois de nazista, o mínimo que você está sendo chamado agora é de machista. Jack é a sua reação ao movimento #MeToo?
Você não é a primeira pessoa a dizer isso. Acho que vivemos numa era de reducionismo, em que as mensagens têm de ser reduzidas ao mínimo. Menos toques, menos.
Jack tem uma mente descompensada. Sofre claramente de transtornos. Achei que seria divertido criar cenas como a da obsessão dele por limpar a cena do crime, ou a do piquenique familiar que termina em banho de sangue. Mas a essência do filme é a cultura da indiferença.

Como assim?
A mulher que vai à polícia, que grita por socorro na janela. As mulheres estão protestando e forçando todo o mundo a ouvir suas vozes, mas as mudanças, aqui mesmo nesse festival, ainda têm sido tênues.

Por que escolheu Matt Dillon para o papel?
Você já falou com ele, não? Matt deve ter dito que foi a primeira coisa que ele próprio perguntou. Escrever esse filme não foi fácil. E na produtora (Zentropa) as pessoas diziam que não seria fácil encontrar o ator. Matt quase desistiu quando foi me visitar em Oslo para fazermos a leitura do roteiro.
Prometi-lhe que seria um set ameno, a despeito do tema, e creio que conseguimos. Escolhi-o por seu rosto bonito. A gente valoriza muito a beleza das mulheres, mas e a dos homens? As mulheres adoram essas carinhas de anjo, principalmente quando os sujeitos as surpreendem com uma pegada forte.

Durante todo o tempo, Jack está querendo construir uma casa. Quer mostrar para ele mesmo que é um arquiteto, um artista, mas a casa está sempre sendo demolida. Finalmente, é uma arquitetura de horror, mas não vamos dar spoiler. O assassinato em série é uma forma de arte?
É um pouco a ideia que está em discussão, mas é como já falamos no início. Era importante que Matt (Dillon) entendesse a mente de Jack e não o julgasse do ponto de vista moral, mas nunca é fácil para os outros aceitar. Mas ele é um ator, todos sabem que o autor sou eu. A fatura vem para mim. Viro um monstro.
Esse julgamento das ruas é a coisa mais fácil de manipular.

E como foram as reações?
Cheguei a Cannes ouvindo que as mulheres iam querer me trucidar. Até agora têm sido respeitosas, mas o inimigo certamente não sou eu. Tenho criado mulheres fortíssimas. Em Ondas do destino, Dançando no escuro. Acredito na paridade, mas não consigo vê-la despontando no horizonte.

Por que você dividiu a história em cinco capítulos, identificados como ‘incidentes’?

Creio que isso me dá uma riqueza de tom muito grande, da mesma forma que iniciar o filme com o diálogo entre Jack e esse Verge (Bruno Ganz), que só identificamos no final. Supostamente, essa é uma história de época, passa-se nos Estados Unidos, nos anos 1970. Isso me permite certa distância e também impregnar a história de Jack de um humor absurdo. No catálogo do festival, o filme é definido como uma mistura grotesca de sofisticação com piedade quase infantil pelo personagem. Estou certo de que as pessoas pensam “Lars está f... com a gente”.

Como você define sua colaboração com o fotógrafo chileno Manuel Alberto Claro?
Manuel Alberto Claro, de 48 anos, nasceu em Santiago do Chile, mas é um diretor de fotografia dinamarquês.
Quando comecei a me aprofundar nas novas tecnologias, precisava de alguém como ele. Jovem, ousado. Manuel tem o sentido da luz, é econômico. E eu precisava de alguém capaz de iluminar o inferno. Ele me apresentou soluções criativas, mas basicamente partimos do conceito sartriano. O inferno são sempre os outros. (Estadão Conteúdo).