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Estreia 'Trama fantasma', último filme de Daniel Day-Lewis

Vicky Krieps é Alma em 'Trama fantasma' - Foto: UNIVERSAL PICTURES/DIVULGAÇÃO
No primeiro encontro amoroso entre Reynolds (Daniel Day-Lewis) e Alma (Vicky Krieps), ele não está interessado em despi-la, mas sim em vesti-la – com uma criação sua. Estilista de alta-costura na Londres pós-guerra, Reynolds Woodcock é um artista idiossincrático e meticuloso e também a razão de ser de Trama fantasma, longa de Paul Thomas Anderson com seis indicações ao Oscar (melhor filme, direção, ator, atriz coadjuvante, figurino e trilha sonora) que estreia nesta quinta (22) nos cinemas brasileiros.

No atelier/residência de Reynolds, absolutamente tudo orbita em torno dele. O café da manhã deve ser tomado em meio a um silêncio monástico. Ruídos são distrações, ele diz. E Reynolds não admite ser perturbado pela mínima distração de seu foco – o fluxo criativo que o faz desenhar vestidos, equiparados a obras de arte.

Quando Reynolds conhece Alma, ela é uma garçonete interiorana, capaz de memorizar o quase infinito número de itens que ele pede para sua primeira refeição do dia. Daí em diante, o estilista transporta Alma para seu mundo de linhas e agulhas, na qualidade de modelo e musa. Não sem antes revelar a razão de ter permanecido solteiro: “O casamento me faria desonesto, algo que não quero ser”.

E assim chegamos ao cerne desse filme memorável de Paul Thomas Anderson, que se interroga sobre o que é e como manter a honestidade na arte e no amor. Essas duas instâncias – o amor e a arte – convivem em paralelo na casa e na vida de Reynolds e Alma, com alguns pontos de entrechoque, precisamente os mais relevantes da trama, nos quais os fantasmas ganham forma visível.

Durante uma prova de roupas, Reynolds nota o ar de desagrado de Alma e a indaga sobre a origem de seu aborrecimento.

A modelo responde que não gosta do tecido do vestido que tem sobre o corpo. É o mote para Reynolds desqualificar seu gosto, determinar que ela nunca terá razão num desacordo de ideias com ele e sua irmã Cyril (a excelente Leslie Manville, que concorre à estatueta) e advertir que a insistência em confrontá-lo acabará por lhe trazer problemas. “Talvez eu esteja procurando problemas”, diz ela.

A resposta da personagem é um sutil lembrete da capacidade de Alma manter suas opiniões e suas escolhas num ambiente quase sempre hostil e opressor. O molde de mulher subjugada aos maus modos de um machista incorrigível não lhe cabe, muito embora alguns críticos tenham apontado o fato de Reynolds ser um autêntico representante da hoje chamada “masculinidade tóxica” como empecilho a uma vitória de Day-Lewis na disputa pelo Oscar de melhor ator.

O segundo atrito do casal se dá no momento em que Alma faz um gesto de carinho em sintonia com seu desejo de amar Reynolds à sua maneira. Longe de ser receptiva, a reação do estilista deriva para uma discussão na qual ele afirma: “Isso é uma emboscada? Você veio aqui para me matar? Mostre-me as suas armas!”.

Se Reynolds enxerga a concessão ao desejo do outro como uma emboscada fatal, Alma tem a necessidade de eliminar a “distância” que insiste em permanecer entre eles. Ela conclui que somente diante da real possibilidade da extinção física, ao se ver “abatido pelas costas, caído”,  Reynolds consegue ter um comportamento “dócil e receptivo”, para depois ficar “forte novamente”. É assim que ela o quer.
É assim que, num acordo tácito, ele se dispõe a ser.

CAPA A essa altura, fica claro que, ao longo de todo o filme, Thomas Anderson (autor do roteiro original) fez Reynolds e Alma realizarem um balé (ou uma esgrima) de gestos e frases por meio dos quais ele procurou vesti-la com encanto e mistério, talvez as características fundamentais na escolha de um objeto amoroso. E ela agiu para retirar dele a capa de arrogância e autossuficiência que havia se tornado sua segunda pele.

É notável como o cineasta faz esse movimento de descosturar a alma das personagens ao mesmo tempo em que compõe um filme de aparência requintada, elegante, solene. O plano de abertura de Trama fantasma introduz o espectador ao universo de requintes e mesuras habitado por Reynolds ao som (instrumental) de My foolish heart. Ao longo da história, ainda vamos ouvir peças de Fauré, Debussy e Schubert, interpretadas pela Royal Philharmonic Orchestra. Os vestidos criados por Reynolds são dotados de uma beleza exuberante, e o modo como ele mesmo se veste se aproxima da própria definição de estilo.

Visto de fora, o acordo estabelecido entre Alma e Reynolds para fazer com que sua relação e a arte dele sobrevivam e convivam uma com a outra soa doentio. Mas está claro que, para ambos, a solução é nada mais que honestíssima. Isso nos leva à conclusão de que a resposta de Trama fantasma para a grande questão que o filme propõe é que, no amor e na arte, a honestidade anda de mãos dadas com o desvio da norma. Em suma, Paul Thomas Anderson conseguiu a proeza de fazer um filme subversivo, mas vestido em traje a rigor.

 

 

ATOR ENCERRA CARREIRA

Três vezes vencedor do Oscar (Meu pé esquerdo, Sangue negro, Lincoln), amplamente considerado o mais completo ator de sua geração, Daniel Day-Lewis, de 60 anos, anunciou que David Woodcock foi seu último papel no cinema.

Num comunicado divulgado no final do ano passado, o ator informou que encerraria sua carreira, sem mencionar os motivos da decisão ou o que fará daqui para a frente.

Em novembro passado, tema de capa da revista W, Day-Lewis falou sobre o assunto pela primeira vez, numa longa entrevista concedida à publicação. Ele contou que a decisão foi tomada durante as filmagens de Trama fantasma, quando se viu tomado por uma intensa “tristeza”. Disse ainda que não tinha a intenção de assistir ao resultado desse trabalho, para o qual se preparou aprendendo a costurar e refazendo pessoalmente um modelo Balenciaga.

“Não querer ver o filme está relacionado com a decisão que tomei de parar de trabalhar como ator”, disse, reafirmando que não há uma explicação para o encerramento da carreira, como também não lhe parece haver alternativa a essa decisão. “A vida inteira falei sobre parar de atuar, e não sei por que desta vez foi diferente. Mas o impulso de parar se apoderou de mim e isso se tornou uma compulsão – era algo que eu tinha que fazer.”

Apesar de não oferecer uma justificativa para o abandono, Day-Lewis dá uma pista do que está por trás dele: “Receio em empregar a excessivamente usada palavra ‘artista’, mas há algo da responsabilidade do artista que está em mim. Preciso acreditar no valor do que estou fazendo. O trabalho tem que parecer vital. Irresistível, até. E, se o público acreditar nele, isso deveria ser bom o bastante para mim. Mas, ultimamente, não é”.

Dolorosamente lamentada por fãs do cinema, a aposentadoria voluntária de Day-Lewis entristece também o próprio ator, segundo ele contou à W.
“Sinto uma grande tristeza, e esse é o sentimento correto para se ter. Como seria estranho se fosse apenas um passo empolgante em direção a uma vida nova. Eu me interesso por atuação desde os 12 anos e, antes, qualquer coisa que não fosse o cinema – a caixa de luz – ficava na sombra (para mim). Quando comecei (a atuar), era uma questão de salvação. Agora, quero explorar o mundo de um modo diferente.”

11 VEZES DAY-LEWIS

Relembre alguns dos mais marcantes filmes do ator britânico


Minha adorável lavanderia (1985)
Uma janela para o amor (1985)
A insustentável leveza do ser (1988)
Meu pé esquerdo (1989)
Em nome do pai (1993)
As bruxas de Salém (1996)
Gangues de Nova York (2002)
O mundo de Jack e Rose (2005)
Sangue negro (2007)
Nine (2009)


Lincoln (2012)

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