Denúncias de assédio sexual abalam Hollywood e indicam que novos tempos vêm aí

Fim de House of cards, expurgo de Harvey Weinstein e cancelamento do Emmy para Kevin Spacey são exemplos de que o jogo virou

Márcia Maria Cruz Cecília Emiliana

- Foto: Netflix/divulgação


Hollywood, a plataforma de streaming Netflix e a poderosa indústria do entretenimento enfrentam uma “revolução” depois da onda de denúncias de assédio sexual envolvendo alguns de seus ícones. Sob os holofotes estão homens poderosos: os atores Kevin Spacey e Dustin Hoffman, o megaprodutor Harvey Weinstein e os diretores Brett Ratner e Lars von Trier. Todos acusados tanto por mulheres famosas quanto por homens, no caso de Spacey.

Desta vez, não ficou por isso mesmo. Hollywood decidiu mudar as regras do jogo. O ex-manda-chuva Harvey Weinstein foi demitido da própria produtora, além de expulso, pela Academia de Artes e Ciências, do grupo encarregado de escolher os vencedores do Oscar.

Kevin Spacey pediu desculpas e se assumiu gay, mas a Netflix decidiu pôr fim à série House of cards, cuja quinta temporada lhe rendeu salário calculado em US$ 10 milhões. Ontem, o astro foi acusado de pedófilo por um artista que não quis se identificar, em depoimento à revista Vulture. O fato se deu quando ele tinha 14 anos e era aluno de Kevin, em Nova York.

A Academia Internacional de Artes e Ciências Televisivas desistiu de dar o prêmio Emmy internacional ao astro. A imprensa norte-americana tem noticiado que as acusações trarão revezes financeiros a Kevin e a Weinstein.

O grupo Women in Film aponta a ausência de diretoras como um dos fatores que fortalecem o comportamento machista nos sets.
De 866 filmes produzidos em Hollywood entre 2002 e 2014, apenas 4,1% foram dirigidos por mulheres, conforme estudo da Universidade Annenberg, na Califórnia.  Em 10 de outubro, por ocasião dos escândalos, a organização apresentou três medidas urgentes para o combate ao assédio: inclusão de mulheres nos conselhos e comitês gestores das empresas e produtoras cinematográficas; estabelecimento de práticas inclusivas de contratação de funcionários, que garantam oportunidade de trabalho inclusive em cargos de chefia; e por fim, o real empenho das empresas na investigação e punição de práticas de assédio.

No Brasil, o escândalo estourou em abril, envolvendo o galã mineiro José Mayer, em caso ocorrido nos estúdios da Rede Globo. Mayer veio a público se desculpar. Mas  a Rede Globo decidiu afastá-lo temporariamente de suas produções.

DESEQUILÍBRIO


 “Numa sociedade dominada por homens, casos de assédio sexual não são incomuns. Ao contrário, eles ocorrem em todos os âmbitos: no trabalho, na escola, no Parlamento. Resultam da assimetria e do desequilíbrio de forças”, afirma Marlise Matos, professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher da UFMG. Ela chama a atenção para o fato de casos recentes envolvendo celebridades remeterem à violência masculina nos espaços de poder.

A professora destaca o ambiente favorável criado por artistas com capital simbólico e político, como é o caso de Meryl Streep, Cate Blanchett e Patricia Arquette. Todas vieram a público se posicionar contra a discriminação da mulher e denunciar o fato de atrizes receberem salários menores do que os homens.

Marlise ressalta que o assédio não ocorre apenas na área da cultura. Em diversos campos, conforme pontua, costuma se apresentar de maneira ambígua. O assediador se aproxima sedutoramente. “Há o cortejo, algo performático. Nunca é diretamente, é um movimento para envolver.” Ela ressalva que não são todos os homens em cargos de poder que cometem a prática, mas a violência costuma acontecer em situações que envolve hierarquia. Quando o assédio ocorre, destaca, a vítima (seja mulher ou homem) é destituída de subjetividade ao ser transformada em objeto.

Na avaliação da especialista, as denúncias são importantes, mas não são suficientes. “Trazem constrangimento público, que faz com que outros assediadores pensem antes de cometer os atos, mas é importante a responsabilização criminal.

“Não é uma vingança da mulher. O assediador tem que ser responsabilizado penalmente, criminalmente e também financeiramente”, defende. 

 



Na mira

BRETT RATNER
O diretor de A hora do rush foi acusado pelas atrizes Natasha Henstridge e Olivia Munn

DUSTIN HOFFMAN
O astro foi denunciado pela produtora de cinema Anna Graham Hunter e pela roteirista Riss Gatsiounis

HARVEY WEINSTEIN
O poderoso produtor de cinema norte-americano é alvo de denúncias de Gwyneth Paltrow, Angelina Jolie, Cara Delevingne, Lea Seydoux, Rosanna Arquette e Mira Sorvino, entre outras cinco dezenas de atrizes

JOSÉ MAYER
O galã mineiro foi acusado pela figurinista Susllem Tonani, que recebeu a solidariedade de várias atrizes da Rede Globo

KEVIN SPACEY
O astro foi acusado de assédio por dois atores (Anthony Rapp e Roberto Cavazos) e de pedofilia por um ex-aluno

LARS VON TRIER
O cineasta foi denunciado pela cantora e atriz Bjork, que disse ter sido assediada “por um diretor dinamarquês” enquanto rodava um filme. Bjork só filmou Dançando no escuro (2002), dirigido por Trier
A cineasta Laís Bodanzky defende a maior participação de mulheres nos cargos autorais e de chefia - Foto: Beatriz Lefevre
ENTREVISTA
Lais Bodanzki
cineasta

‘‘É o efeito dominó’’

O que os casos de denúncia de assédio sexual em Hollywood revelam sobre a indústria cinematográfica?

Não estão revelando algo especificamente da indústria cinematográfica. Revelam uma questão séria da sociedade. A diferença é que as mulheres do audiovisual tiveram coragem de falar primeiro. Talvez nem seja a coragem de falar primeiro. Talvez seja o fato de ser uma indústria que trabalha com glamour, que envolve pessoas de muito destaque no imaginário de todo mundo. A mídia repercute esses casos. Por isso mesmo, as mulheres do audiovisual são tão importantes para a sociedade como um todo, pois a gente tem visibilidade, principalmente as atrizes. Revela algo que existe o tempo inteiro, sempre existiu, mas que as mulheres, com muito medo da represália e sob pressão psicológica, ficavam inibidas de expor.

O movimento feminista, de certa forma impulsionado pela indústria do cinema, está mostrando que a mulher até então se comportou como minoria, apesar de a gente ser a metade do planeta. Agora, com movimentos como a Marcha das Mulheres, em Washington, a mulher se coloca politicamente, ativa, com voz, exigindo direitos iguais. Está virando o contrário: não denunciar é que dá vergonha.

Ocorre algo semelhante no Brasil?

Sim, acontece! Tivemos o movimento Mexeu com uma, mexeu com todas. Temos escutado cada vez mais casos revelados, isso é importante. Estive na Espanha, no festival de cinema de Valladolid, com o filme Como nossos pais, e assisti a uma mesa de mulheres da indústria do audiovisual espanhola. Lá acontece a mesma coisa. Lá, as mulheres são muito ativas, mas, como aqui no Brasil, somos poucas nos cargos de autoria, de espaço da voz na mídia. Na semana passada, atrizes espanholas começaram a denunciar assédio. É o efeito dominó, que sai da indústria do audiovisual e vai para diversas áreas da sociedade.

Como mudar as assimetrias entre homens e mulheres em cargos de chefia no cinema?


É um processo lento, mas, aqui no Brasil, as mulheres do audiovisual estão se organizando e dialogando diretamente com a Agência Nacional de Cinema (Ancine), que começou a adotar uma atitude muito interessante. Observar, por exemplo, quem compõe o júri para avaliar um edital de desenvolvimento de roteiro. Normalmente, são homens, mas agora a Ancine já organizou para que o júri, e não só, seja composto metade por  homens e metade  mulheres. Isso é uma forma de mudar o olhar para os projetos, propor discussão de gênero entre os jurados e equilibrar essa visão. As mulheres que estão chegando vêm com força e determinação. Fui júri de desenvolvimento de roteiro, e os projetos escritos por mulheres eram muito bons. Escolher pelo critério de ser mulher não foi necessário, os projetos vieram naturalmente. Menos mulheres escrevendo, porém, com mais qualidade. Estive no Festival de Berlim, havia 12 filmes brasileiros, metade dirigida por mulheres. Berlim não fez uma cota para mulheres. Simplesmente, os projetos foram selecionados por sua qualidade. Independentemente disso, sou a favor de cotas para corrigir erros históricos. Questão do gênero é um erro histórico milenar. No Brasil, destaco a questão da mulher negra. Se para as mulheres existe opressão invisível, para as mulheres negras muito mais do que isso.

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