Filme Gabriel e a montanha refaz viagem trágica de brasileiro à África

Em seu novo longa, Fellipe Barbosa, diretor de Casa grande,conta como foi a trajetória do amigo economista Gabriel Buchmann até o Monte Mulange, em Malawi

por Pedro Galvão 02/11/2017 07:49
PAGU PICTURES/DIVULGAÇÃO
(foto: PAGU PICTURES/DIVULGAÇÃO)

Em 5 de agosto de 2009, o corpo do economista carioca Gabriel Buchmann, de 28 anos, foi encontrado no Monte Mulange, na República do Malawi. Ele ficou desaparecido por 19 dias, e sabia-se que tentava chegar ao topo da montanha na região central da África. O trágico fim da jornada de quase 12 meses do jovem por vários países consternou familiares e amigos, mas também inspirou um deles. O cineasta Fellipe Barbosa transformou a história do amigo no longa Gabriel e a montanha, que estreia hoje nas salas brasileiras, depois de receber dois prêmios na Semana da Crítica, em Cannes, em maio passado.

Guiado pelas anotações deixadas por Gabriel em um caderno, fotografias em sua câmera e e-mails enviados para familiares e a namorada, Barbosa refez os passos do economista pelo continente africano, o que incluiu passagens pelo Quênia, Tanzânia e Zâmbia, antes de chegar ao Malawi. Buchmann deixou o Brasil  em 2008 para rodar o mundo pesquisando sobre as populações em situação de pobreza.

Depois de passar por outros continentes, chegou à África para viajar de maneira “sustentável”, vivendo e se vestindo como um nativo, hospedando-se em periferias e vilarejos na casa de habitantes comuns, compartilhando a cultura, a comida e o cotidiano deles. Era a preparação escolhida por ele para um doutorado em políticas públicas para países em desenvolvimento, que faria na Universidade da Califórnia, nos EUA, onde ganhara uma bolsa de estudos, e o recorte filmado pelo amigo cineasta.

Foram mais de cinco anos entre pesquisas, filmagens e outras etapas de produção, até que o longa ficasse pronto e fosse selecionado para a Semana da Crítica, uma das mostras paralelas ao Festival de Cannes, em que conquistou o júri com os prêmios Revelação France4, pela criatividade, e Foundation Gan, voltado para auxílio à distribuição. O sucesso no festival levou o filme para as salas francesas, onde foi assistido por mais de 83 mil espectadores. Agora, na hora de o público brasileiro se encontrar com a história de Gabriel, o cineasta diz estar “com uma expectativa muito boa”.

“Estaremos em mais salas do que imaginávamos (o filme estreia em 82 cinemas no país), muita gente interessada em exibir, o que é difícil no nosso gargalo de exibição, com filmes que não têm uma promessa grande de lucro. Espero que faça mais público aqui do que na França”, afirma Barbosa, que também dirigiu Casa grande (2014), premiado nos festivais de Paulínia, no Brasil, e Cinelatino, em Toulouse, na França.

O diretor atribui a boa receptividade que o filme teve na França à honestidade com que retratou seu personagem principal. “A unanimidade da crítica francesa é muito difícil de ocorrer. Acho que jamais vai ocorrer de novo. Nossa única avaliação negativa entre 23 listadas no site Allocine (portal francês especializado em cinema) foi do Le Figaro, e que bom que foi dele, pois é um jornal de direita. Em todos os outros veículos tivemos pelo menos três estrelas, até pelo contexto em que o filme aparece. Diferentemente da maioria das produções, que se mostram cínicas e violentas, o Gabriel, por mais chato que possa parecer para alguns, é puro; está em busca de algo belo, com o coração aberto. É uma resistência a esse modelo de heróis e anti-heróis que estamos acostumados a ver”, afirma.

COMPLEXIDADE Conforme o diretor esclarece, quem espera um protagonista representado como um herói ou alguém de comportamento idealizado acaba se surpreendendo. No roteiro – assinado pelo diretor –, Gabriel tem momentos de egoísmo, arrogância, prepotência, além de conflitos com outras pessoas e discussões com a namorada, que o acompanhou em parte do trajeto antes do Malawi. Isso tudo além de uma insistência muitas vezes irritante, que é sua característica mais marcante.

“Cristina Reis (namorada de Gabriel na época) me ajudou muito. Ela foi testemunha ocular de muitas coisas e chegou até a escrever alguns diálogos. A gente não queria retratá-lo como um santo. Gabriel dizia que não tem nada mais chato que santo, embora adorasse São Francisco. Mostrar o ser humano me interessa muito mais que um herói. Ele exibe egoísmo e arrogância em alguns momentos, mas tem também altruísmo, humildade e simplicidade em outros, o que torna o personagem mais complexo”, descreve.

O diretor exibiu o filme a amigos próximos e a familiares de Gabriel em uma sessão especial no Rio de Janeiro, e foi muito elogiado por eles. “Pessoas muito próximas ao Gabriel falaram para não nos preocuparmos, pois ele era mais insistente e mais chato do que no filme”, conta.

A responsabilidade de reproduzir as nuances da personalidade de Gabriel Buchmann coube ao ator João Pedro Zappa, que recentemente estrelou Boa sorte (2014) e fez parte do elenco da minissérie global Os dias eram assim (2017). Selecionado em um teste entre mais de 10 atores, Zappa conquistou a confiança de Barbosa pela semelhança com o personagem. “Ele era o que eu precisava – alguém que conduzisse a cena de dentro. E ele sempre tinha algo novo. Mesmo que estivesse bom, vinha com uma nova ideia. Aprecio muito isso no ator, precisava de alguém com a coragem do Gabriel, e ele me lembrava o Gabriel, com uma mistura da fragilidade com força, um olhar doce, tenro, atento, escuta atenta e uma inteligência incrível”, descreve.

João Pedro Zappa e Carolina Abras, que interpreta Cristina Reis, são os únicos atores profissionais no elenco. Em seu esforço de produção, Felipe Barbosa convenceu diversas pessoas que se envolveram com Gabriel a atuar. Gente que o hospedou, seu guia na escalada do Kilimanjaro e até um outro com quem Buchamnn brigou em um safári na Tanzânia toparam colaborar e reproduzir sua experiência com o jovem carioca, assim como o guia dispensado por ele no Monte Mulange, onde ficou perdido e acabou falecendo vítima de hipotermia, consequência de uma queda brusca de temperatura. O filme inclui também relatos póstumos de cada um sobre Gabriel, adicionando uma estrutura mais documental à filmagem.

EMOÇÃO “Para muitas dessas pessoas eu tive que dar a notícia (da morte de Gabriel), então foi um processo de muita emoção, sendo que algumas delas foram muito difíceis de encontrar, como o Lenny, em um vilarejo massai no interior do Quênia. São pessoas muito puras em relação ao cinema, muitas delas nunca nem viram um filme, pessoas com uma rotina muito dura de trabalho. Era uma maneira de fazer algo diferente por elas, todos ganharam um salário, e o Lenny foi com a gente para Cannes, vestido a caráter, como um guerreiro massai”, conta Barbosa. Segundo ele, ainda muito abalado pelo desfecho trágico de Gabriel, seu último guia foi o mais resistente às gravações.

A trajetória de Buchmann e seu fim trouxeram comparações entre Gabriel e a montanha e Na natureza selvagem (2007), adaptação cinematográfica de Sean Penn para o livro de mesmo nome de Jon Krakauer, que também relata uma história real. No entanto, apesar de algumas semelhanças entre as histórias, Barbosa ressalta a diferença entre os personagens. “Gabriel é diferente do Cris (McCandless), pois sua viagem não é de completa fuga e de negar a família. Pelo contrário, Gabriel é muito grato, muito carinhoso com a família. Ele queria aprender e ir para os EUA estudar. Não queria se desligar, como o outro. O interesse do Gabriel era justamente a civilização. Na natureza selvagem é um filme determinista, como os americanos amam. Torna o protagonista um herói, e com Gabriel as motivações são mais misteriosas. O filme não decifra isso, até porque seria presunçoso da minha parte, ainda mais sendo um amigo”, compara, ressaltando que “Gabriel nos encoraja a viajar para um lugar distante, cercado de preconceitos, temores. Ele consegue fazer uma reprodução mais humana dessa região, de forma mais simples, como a vida é, um retrato que mostra como somos próximos, apesar de tão distantes”.

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