Autores do recém-estreado 'O fantasma da Sicília', contam por que abordam a máfia em seus filmes

Diretores italianos Fabio Grassadonia e Antonio Piazza revelam ainda sua admiração por Pixote

por Mariana Peixoto 01/10/2017 10:33
PANDORA FILMES/DIVULGAÇÃO
O longa em cartaz no Cine Belas Artes se baseia em episódio real do sequestro e morte de um garoto de 13 anos, ocorrido na década de 1990 (foto: PANDORA FILMES/DIVULGAÇÃO)

Em 23 de novembro de 1993, Giuseppe Di Matteo foi sequestrado, aos 13 anos, em um lugar remoto da Sicília. Os sequestradores enganaram o garoto, passando-se por policiais. Disseram a ele que o levariam para se encontrar com o pai, Santino Di Matteo. Ligado à máfia, o pai de Giuseppe havia se tornado colaborador da polícia. O garoto nunca mais foi visto. Ficou 25 meses em cativeiro, até ser morto. Seu corpo foi dissolvido em ácido.


O desaparecimento e a morte de Giuseppe Di Matteo (esta ocorrida em janeiro de 1996) viraram a Itália de cabeça para baixo. Para muitos sicilianos, o crime, com requintes de crueldade, foi o basta aos desmandos da máfia, que impunha consequências na vida de todos.

Foi mais ou menos nesta época que os diretores e roteiristas Fabio Grassadonia, de 49 anos, e Antonio Piazza, de 47, decidiram deixar Palermo, a capital siciliana. Não se conheciam, mas a motivação foi a mesma: abandonar uma história sangrenta e cruel. Só que esse passado não os abandonou.

Os cineastas Fabio Grassadonia e Antonio Piazza dizem que suas famílias foram direta ou indiretamente afetadas pela ação da máfia na região da Sicília

O fantasma da Sicília, em cartaz no Cine Belas Artes, é o segundo longa-metragem dirigido pela dupla. Mais uma vez, a máfia e as histórias de vida transformadas por causa do crime organizado são tratadas pelos dois no cinema. A narrativa é centrada na história de Giuseppe (na tela interpretado por Gaetano Fernandez), mas de uma forma inusitada. Os diretores criaram uma trama que mistura elementos fantásticos, mostrando, por vezes com cara de sonho, noutras, de pesadelo, o desaparecimento do garoto. Nesta fábula, mais do que a família, o impacto da ausência do adolescente é sentido por Luna (Julia Jedlikowska), sua apaixonada colega de escola. “O que nos interessa é entender como a subcultura da máfia moldou nossa mentalidade e nossa alma”, diz Grassadonia que, ao lado de Piazza, concedeu a seguinte entrevista ao Estado de Minas.

A máfia é um tema recorrente da obra de vocês (o curta Rita, de 2009, e o longa Salvo, de 2013) e também na cinematografia italiana. Por que falar da máfia hoje em dia?
Fabio Grassadonia – A máfia hoje virou quase um gênero para séries de ficção da TV italiana. Mas isso não nos interessa. O que é realmente interessante sobre o tema é como a máfia influenciou a vida dos sicilianos. Nós dois crescemos em Palermo, que, nos anos 1980 e 1990, viveu o período mais sangrento de sua história recente. Quando, 10 anos atrás, decidimos nos tornar diretores, ficou claro desde o início que teríamos que voltar às nossas origens. O que nos interessa é entender como a subcultura da máfia moldou nossa mentalidade e nossa alma. No curta Rita, por exemplo, quisemos explorar como a máfia afetou a população siciliana e a maneira de convivência entre todos. Em nossas histórias, tentamos ir fundo num aspecto antropológico deste fenômeno.

O fantasma da Sicília tem uma relação forte com o cinema fantástico. Usar elementos da fantasia foi uma maneira de encontrar um viés diferente para um tema que já foi muito abordado pelo cinema?
Antonio Piazza – Sim. Em nossos filmes buscamos evitar os clichês que são ligados à máfia, coisa que já foi contada em vários romances e filmes. Assim como os protagonistas do longa, a busca é por recriar a realidade através de suas fantasias. E há ainda uma razão pessoal: tanto a minha família quanto a de Fabio foram direta ou indiretamente afetadas pela presença do crime organizado. Quando decidimos nos tornar contadores de histórias, vimos que isso só seria possível se conseguíssemos recriar a realidade.

Acreditam que esteja havendo uma renovação no cinema italiano?
Grassadonia – Hoje podemos dizer que, depois de muitos anos de um cinema italiano ruim, a produção mais recente tem sido muito interessante. E muitos realizadores emergiram no cenário internacional, Paolo Sorrentino (A grande beleza, Juventude) e Matteo Garrone (Gomorra) são os mais conhecidos. Hoje você vê, novamente, uma produção italiana relevante nos mais importantes festivais. Agora, não é um movimento homogêneo, em que as pessoas venham trabalhando juntas. Nós, por exemplo, somos mais isolados. O que gostamos desta geração atual é que os realizadores estão prontos para explorar sua própria linguagem.

Vocês estiveram recentemente no Brasil, em setembro, na Festa do Cinema Italiano. O que deu para conhecer do país e o que conhecem do cinema brasileiro?
Piazza – Essa foi nossa segunda vez. Em 2014, apresentamos o filme Salvo no Festival do Rio. O que realmente gostamos foi da maneira como nosso filme foi analisado. Brasil e Itália têm uma distância física tão grande, mas, ao mesmo tempo, têm muitas similaridades. Acho que isso tem a ver com a quantidade de descendentes de italianos que vivem aí, principalmente em São Paulo. Quanto ao cinema, infelizmente, são poucos os filmes brasileiros que são lançados na Itália. Recentemente, assistimos a Aquarius (de Kleber Mendonça Filho) e a Que horas ela volta? (de Anna Muylaert), filmes muito diferentes, mas igualmente encantadores. Agora, é claro que conhecemos muitos dos clássicos do Brasil. Para a pesquisa de O fantasma da Sicília assistimos a muitos filmes com adolescentes. Um dos que mais nos impressionaram foi Pixote, de Hector Babenco. O personagem central é uma figura inesquecível, tanto pela dor que ele experimentou quando estava na prisão quanto pela vida que teve depois.

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