Festival Varilux exibe a recente produção do cinema francês em diversas cidades

Em Agnus Dei, Anne Fontaine aborda a delicada relação entre freiras e sexualidade

por Carolina Braga 11/06/2016 06:00
Fotos: Agência Febre/Divulgação
Fotos: Agência Febre/Divulgação (foto: Fotos: Agência Febre/Divulgação)
Rio de Janeiro – A descoberta de 800 ossadas de bebês nas imediações de um convento na Irlanda, em 2014, não tem ligação direta com Agnus Dei, o novo filme da diretora Anne Fontaine, em cartaz na programação do Festival Varilux. São temas análogos, mas que chamam a atenção para o quão nebulosa ainda é a história envolvendo freiras, recém-nascidos e clausura. Assim como o caso irlandês, a trama contada pela atriz e diretora francesa é real. E, apesar da relevância social e histórica, ainda era – até então – desconhecida pelo Vaticano.


Quem viveu a experiência foi a médica Madeleine Pauliac, jovem que atuou no rescaldo da Segunda Guerra Mundial. Ela ajudou na recuperação de cidadãos franceses no território polonês. Pauliac faleceu em 1946 em um acidente de carro. Mais de 60 anos depois, o sobrinho Philippe Maynial (que não chegou a conhecer a tia)  encontrou em um diário de trabalho o argumento hoje transformado em filme. Curiosamente triste, ele estabelece diálogo com acontecimentos recentes no Brasil.

Madeleine Pauliac virou Mathilde Beaulieu. Em 1945, quando servia à Cruz Vermelha, foi chamada para atender a uma freira polonesa. Ao entrar clandestinamente no convento, descobre que não apenas uma, mas sete irmãs de caridade estavam grávidas. Eram vítimas do estupro coletivo liderado por soldados soviéticos. Havia também religiosas contaminadas com doenças sexualmente transmissíveis.

A jovem atriz Lou de Laâge, intérprete de Mathilde, sempre teve noção do quanto contava algo atemporal e relevante. No Brasil para divulgar o filme, essa impressão ganhou nova dimensão. Laâge está por dentro do caso do estupro da adolescente no Rio de Janeiro, assim como sabe da força do movimento que denuncia a violência contra mulher e o machismo. “Estupro sempre existiu e, provavelmente, vai continuar. Por isso, é muito importante falar sobre o tema. É uma forma de tentar tornar o homem melhor. Não é um posicionamento da mulher, mas do ser humano”, ressalta.

Agnus Dei estreou em janeiro no Sundace Festival, nos Estados Unidos. Em fevereiro, entrou no circuito comercial da França. Segundo dados do Mojo Box Office, é o 30º filme mais visto no país em 2016 em meio aos blockbusters americanos, líderes em qualquer mercado. De acordo com a atriz, tanto o resultado na bilheteria quanto a repercussão do tema chamaram mais atenção do que o previsto. Depois da exibição no Vaticano,  em fevereiro, religiosos agradeceram a Anne de Fontaine. “Disseram que o filme era terapêutico para a Igreja. Nunca tínhamos pensado nisso”, comenta.

Para a atriz, o longa, batizado na França de Les Innocentes (As inocentes), é relevante não apenas por falar sobre o estupro, mas por tratar da reconstrução física e psicológica das mulheres depois da violência. Há também a questão da fé e dos votos. Pode a fé ser abalada por violação tão cruel? O que significa para uma mulher ser mãe forçadamente depois de ter abandonado esse ideal em favor da castidade? O que fazer com a revolta e mesmo com o desejo de vingança? Será que são sentimentos compatíveis com os ideais de quem decide viver para a religião?

Apesar de lançar perguntas ao espectador, em nenhum momento o roteiro oferece respostas. Nem mesmo propõe caça aos culpados ou faz qualquer julgamento. “Anne não queria colocar o ponto de vista dela. Queria mostrar, deixar o espectador livre para tirar as próprias conclusões. Foi até meio pudica nesse aspecto”, comenta Lou.

É a primeira coprodução com a Polônia na carreira de Anne de Fontaine. No ano passado, ela esteve no Festival Varilux e comentou sobre o desafio de filmar no país do papa João Paulo II. Dos 28 atores do elenco, apenas três eram franceses. Houve dificuldades de comunicação e climáticas, já que o longa foi rodado em janeiro 2015, em pleno inverno.

A imagem dos campos brancos cobertos pela neve, a força da religiosidade do povo e as cicatrizes da guerra fazem de Ida, longa de Pawel Pawlikowski, vencedor do Oscar de melhor filme em língua estrangeira em 2015, forte referência. Inclusive, as atrizes polonesas Agata Buzek e Joanna Kulig atuaram nas duas produções.

Para a atriz francesa de 26 anos, nascida em Bordeaux e cria do novíssimo teatro francês, a diretora conhecida por filmes como Coco antes de Channel (2009) é uma espécie de elétron vivo. Não se recomenda encaixá-la em estereótipos. Desafio constante para quem tem a sorte de trabalhar com ela. “Sabia que seria uma história que me levaria a outros lugares. Tinha muita vontade de interpretar essa mulher, uma espécie de heroína das sombras”, conclui. 

 

Discussões atuais

 

Assim como no Brasil, as comédias costumam reinar na bilheteria da França. Em geral, a programação do Festival Varilux traduz essa predileção. Porém, na programação de 2016, em cartaz até 22 de junho, chama mais a atenção a presença de temas que esquentam o debate contemporâneo.

Se Agnus Dei aborda a questão do estupro, Chocolate fala sobre racismo, diferença de classe e xenofobia, tema também abordado por Os cowboys. Esse longa ainda acrescenta a discussão sobre a guerra religiosa.

“O roteiro foi escrito antes do atentado ao Charlie Abdo e ao Bataclan, em 2015. Como muitos filmes, fomos engolidos pelos fatos”, constata o ator Finnegan Oldfield. Ele é o protagonista de Os cowboys, de Thomas Bidegain. Conhecido como roteirista de Ferrugem e osso (2013) e Dheepan (2014), é a estreia dele como diretor de longas-metragens. A narrativa se passa em 1997 e conta a história da peregrinação de uma família francesa comum em busca da filha, recrutada pela jihad islâmica . “Era uma época em que as pessoas ainda não sabiam que os jovens estavam partindo para essa guerra santa”, explica Finnegan.

O diretor Roschdy Zem também é político ao narrar a vida de um ícone do circo: o palhaço Chocolate (Omar Sy, em outra excelente atuação). No início do século passado, em dupla com o palhaço Footic (papel de James Thierrée, neto de Charles Chaplin), fez grande sucesso na França. Despertou também muito preconceito.

“Falar de um ator negro, na França daquela época, serve como alegoria para a situação de hoje. Estamos em meio a uma crise de imigrantes. É muito importante saber como será nossa reação com o outro, como vamos encarar esse problema”, ressalta o cineasta.

*A repórter viajou a convite do Festival Varilux

CIRCULAÇÃO

Em 2016 o Festival Varilux do Cinema Francês ganhou uma semana a mais. Até 22 de junho, serão exibidos em 50 cidades brasileiras 15 inéditas produções francesas. Além de Belo Horizonte, os filmes também chegam a Poços de Caldas, Caeté e Juiz de Fora. Programação completa no www.variluxcinefrances.com.

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