Zé do Caixão vira octagenário e é visto como ícone do cinema brasileiro

Cineasta José Mojica Marins já assinou filmes de gêneros tão diversos como faroeste e pornô

por Pedro Siqueira 13/03/2016 12:15
Jarbas/DP
Cineasta referência no terror nacional completa oito décadas de vida (foto: Jarbas/DP)
“O que é a vida? É o princípio da morte. O que é a morte? É o fim da existência. O que é a existência? É a continuidade do sangue”. Foi com esse discurso que, em novembro de 1964, o cinema brasileiro viu nascer uma das figuras mais icônicas: o coveiro Josefel Zanatas, o Zé do Caixão, em À meia-noite levarei sua alma. Protagonista de filmes, programas de tevê e até marchinhas de carnaval, Zé é uma figura folclórica enraizada no imaginário coletivo do terror brasileiro. Mas o que muitos esquecem é que ele se trata apenas de um único personagem, fruto da mente de um homem cuja filmografia passeia por gêneros tão diversos quanto o faroeste e o pornô: José Mojica Marins, que comemora 80 anos de idade neste domingo (13).

Oficialmente, Zé protagoniza uma trilogia, iniciada em 1964 com À meia-noite…, seguido por Esta noite encarnarei no teu cadáver (1967) e Encarnação do demônio (2008). Mas, mesmo não aparecendo, a aura do personagem paira sobre parte da filmografia do cineasta. Em Ritual dos sádicos (1970), por exemplo, um cientista realiza experiência alucinógena com um grupo de viciados em drogas, que começa a delirar com visões de Zé.

Em entrevista concedida ao Viver à época da estreia da série biográfica Zé do Caixão (Space), em novembro passado, o ator Matheus Nachtergaele analisou: “Isso é trágico e bonito. É a vitória da fantasia sobre a realidade. Eles se mesclaram e, a partir de um certo momento, Mojica assumiu a identidade do personagem para fazer mídia. Ele proporcionou essa confusão”. Em comemoração aos 80 anos de Mojica, o Space reprisa a série de seis episódios na íntegra a partir das 19h15 deste domingo, seguido pelo longa As fábulas negras, à 0h.

Mojica, curiosamente, nasceu em uma cabalística sexta-feira 13, em 1936. Filho único, morou a infância inteira nos fundos de um cinema gerenciado pelo pai, o toureiro Antônio. Lá, teve o primeiro encontro com a sétima arte de forma, no mínimo, inusitada. Em entrevistas, ele conta que, aos quatro anos, foi convidado para conhecer a cabine de projeção no dia em que era exibido um filme educativo sobre doenças venéreas femininas. “Quando olho, vejo uma vagina com gonorreia, um troço horroroso”, afirma Mojica.

Nos anos 1950, fez os primeiros longas, incluindo A sina do aventureiro (1958), “o primeiro faroeste brasileiro do Brasil”. O financiamento vinha da venda de cotas para os alunos da escola de atuação. “Mojica foi autodidata. Nunca passou por uma escola de cinema, até porque a formação nem existia na época. Mas o impressionante é que, mesmo com os problemas técnicos, a criatividade dele sempre sobressai nos filmes. Você pode ver e rever em qualquer época que continua fantástico”, diz o jornalista Osvaldo Neto, de 31 anos, membro do coletivo pernambucano Toca o Terror.

O sucesso de Zé do Caixão, nascido de um pesadelo, no entanto, não trouxe lucro a Mojica. Filmado em pouco mais de uma semana, À meia-noite… foi vendido aos produtores por um preço menor do que os custos de produção. O diretor quase não teve participação nos lucros de bilheteria. Para compensar, Zé do Caixão se tornou figura folcórica, dando nome a uma linha de cosméticos (Mistério), uma cachaça (Marafo Zé do Caixão) e até a uma marchinha no carnaval de 1969, Castelo dos horrores, que pode ser conferida no YouTube.

O cinema transgressor de Zé não passaria incólume pela ditadura militar - sobretudo, no período seguinte ao Ato Institucional nº 5 (o mais severo no cerceamento às liberdades individuais), de 1968. “Tem filme dele que nem no cinema chegou a passar, na época”, recorda Osvaldo.

O baque mais forte na carreira foi a interdição do já citado Ritual dos sádicos, de 1970. O filme só pôde ser exibido na década seguinte e, ainda assim, sob o título de O despertar da besta - e com cortes nas cenas de drogas. Mojica se tornou um “maldito” da indústria. Investidores se afastavam por medo de mais censura. A má fase resultou em Mojica se tornando um diretor contratado para vários filmes, ou “fitas”, como se refere, de qualidade duvidosa, como Dgajão mata para vingar.

Em 1985, assinou o pornô 24 horas de sexo explícito, que não só trazia, como anunciado na época, “as mulheres mais feias do cinema pornô” como também uma cena de sexo entre uma mulher e o cão pastor alemão Jack. Foi nos anos 1990, quando uma fita VHS de À meia-noite… foi lançada nos EUA, que Mojica recuperou a popularidade. “Coffin Joe”, como ficou conhecido lá for a concluiu a trilogia de Zé do Caixão, em 2008.

De onde veio Zé do Caixão?
Foi de um pesadelo que veio a ideia do personagem que se tornaria seu alter ego. No documentário Maldito, dirigido por André Barcinski e Ivan Finotti e premiado no Festival de Sundance em 2001, Mojica relata: “Era uma figura sombria, que eu não conseguia ver o rosto. Tentava me arrastar para minha cova, onde estava escrito a data de minha morte, que eu não queria saber”. As vestes do personagem são uma homenagem aos filmes de terror dos anos 1920 a 1950. Com os trajes de gala do Conde Drácula de Bela Lugosi e as unhas afiadas do Nosferatu de F.W. Murnau. O resto é história.

Trilogia do Caixão


À meia-noite levarei sua alma (1964)
A estreia de Zé do Caixão nos cinemas. Contém cenas que se tornaram icônicas, como a que o coveiro devora um carneiro em plena Sexta-feira Santa. Inicialmente exibido apenas à meia-noite em poucos cinemas de São Paulo, logo se tornou fenômeno de público e passou a ser exibido em outras capitais.

Esta noite encarnarei no teu cadáver (1967)
Após quase morrer no final do primeiro filme, Zé retorna à sua missão: encontrar a mulher que permitirá a continuidade de seu sangue através do filho perfeito. Ele então sequestra as moças mais belas da cidade e as submete a testes macabros, para então escolher a mais digna.

Encarnação do demônio (2008)
Após passar 40 anos na cadeia, Zé está de volta em um mundo totalmente novo. Ele continua em busca da mulher que o dará o herdeiro perfeito. Com produção conturbada, o filme ficou engavetado desde o fim dos anos 1960 e só nos anos 2000 conseguiu ser produzido e chegar às telas. Traz ainda uma das últimas performances de Jece Valadão.

PRATELEIRA
Zé para ler, ver e ouvir


Maldito – A vida e o cinema de José Mojica Marins

A biografia lançada em 1998 por André Barcinski e Ivan Finotti ganhou reedição de luxo com 666 páginas pela Editora Darkside, em 2015. Inspirou o documentário de mesmo nome. R$ 99.

Série Zé do Caixão

Protagonizada por Matheus Nachtergaele, a série aborda a obra de Mojica em seis filmes, lançados de 1958 a 1985. A produção do canal pago Space será reprisada a partir das 19h deste domingo.

Marchinha Castelo dos horrores

Quem disse que Zé do Caixão não tem samba no pé? Lançada em 1969, a marcha fez sucesso nos bailinhos com versos como: “Eu moro no Castelo dos horrores. Não tenho medo de assombração. Ô ô ô, Eu sou o Zé do Caixão”.

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