Nômades e andarilhos inspiram obras de arte

Mais do que fazer um retrato de personagens marginais, o olhar da arte sobre a deambulação revela valores comuns a todos os que já sonharam em cair na estrada

por Walter Sebastião 05/04/2015 00:13

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DANIEL MOREIRA/divulgação
(foto: DANIEL MOREIRA/divulgação )
Saltimbancos, hippies, músicos, andarilhos, migrantes, moradores de rua, viajantes, aventureiros são personagens recorrentes de filmes, peças de teatro, livros, canções. Assim, a arte volta o seu olhar para tipos intrigantes, cuja vida parece misteriosa. São trabalhos que emulam uma vivência diretamente ligada à origem da humanidade: as variadas faces do nomadismo. Por diversos motivos, por necessidade ou por prazer, ainda hoje há quem ame se deslocar mundo afora. De moto, de jipe ou a pé. Às vezes, durante a vida inteira.

Está disponível no YouTube (e contabiliza perto de 50 mil visualizações) o longa-metragem Malucos de estrada 2, do diretor mineiro Rafael Lage, produção do coletivo Beleza da Margem. O filme traz depoimentos, vocabulário, práticas e reflexões, coletados em 19 estados brasileiros, de um personagem bem conhecido: artesãos de rua nômades. Embora os artesãos sejam em maior número, entre os artistas de rua nômades há também malabaristas, poetas, atores, músicos. “É a herança hippie que, no Brasil, foi transformada em outra coisa”, afirma Lage.

Segundo o diretor, o “maluco” é um tipo indefinível, porque ele é resultado dos encontros que tem na estrada, das culturas com as quais interage e das geografias por onde passa. "Ele é um mestiço cultural. Produto da soma das culturas hippie, indígena, afro-brasileira e do morador de rua, que, lapidadas, geraram um ser único, artesanal como são as peças que ele faz", diz. Assim como os antigos hippies, o “maluco” criou um imaginário de enorme penetração na sociedade. "Já passou pela cabeça de todas as pessoas colocar a mochila nas costas e cair na estrada para conhecer o mundo", exemplifica Lage. Ele define seu filme como uns “óculos para corrigir a miopia social sobre os 'malucos', uma visão que fica nos extremos: um olhar romântico ou criminalizador, ora santos, ora demônios. Falta consideração mais equilibrada".

Na opinião de Lage, “por serem artesãos, nômades e coletores de matéria-prima, os 'malucos' são os guardiões da ancestralidade e dos primeiros fazeres humanos. Bebem da fonte dos povos originários e mantêm viva essa cultura”.

Os realizadores de Malucos de estrada 2 abriram mão dos direitos do filme para estimular que as pessoas se apropriem da obra e discutam as questões propostas por ela. A argumentação militante de Rafael Lage tem motivo. O longa nasceu depois de uma blitz ocorrida em 2009, na qual fiscais da prefeitura apreenderam material dos artesãos.

O conflito só foi encerrado em setembro de 2012, com decisão judicial que autorizou a presença de artesãos na rua. Para abordar esse “assunto complexo”, o diretor planejou uma trilogia: Malucos de estrada 2, com a origem do movimento; Cultura de BR, sobre a situação atual; e Como se fabricam marginais no Brasil, sobre a repressão ao movimento. A escolha do número 2 para iniciar a empreitada se deve ao fato de ele representar a “introdução à cultura do maluco”.

 

 

 

À beira do caminho

"O que para a maioria é local de passagem, para muitos, é a casa. Vida assim tão jogada no mundo não é para mim"
DANIEL MOREIRA, FOTÓGRAFO, AUTOR DE PAISAGEM AMBULANTE 381

Foi o ir e vir, toda semana, entre Belo Horizonte e Ipatinga, onde morava sua mulher, que levou o fotógrafo Daniel Moreira a observar com mais cuidado a BR-381. Chamaram-lhe a atenção carcaças de carro, postos de gasolina abandonados, lixo na margem da rodovia, assim como a população que perambula, vive ou trabalha às margens dela.

Trinta e oito imagens, realizadas entre 2011 e 2015, produto dessas observações, estão na exposição Paisagem ambulante 381, em cartaz no Centro de Arte Contemporânea e Fotografia.

"O que, para a maioria, é local de passagem, para muitos, é a casa", afirma Moreira.

O foco do fotógrafo nesse trabalho são as interações entre paisagem e atividade humana, uma transformando a outra. Exemplos: uma caçamba de caminhão abandonada que, aos poucos, vai sendo coberta por vegetação ou coisas e lugares inóspitos transformadas "em lar" por andarilhos.

Os caminhantes da BR, observa Moreira, "são pessoas que adotaram o perambular pela estrada como um estilo de vida. E que vão vivendo com o que encontram no caminho". A existência à margem não apaga dimensões muitos humanas, como a vaidade, evidenciada no uso de adornos que a lente do fotógrafo capta.

"Gostaria que o espectador fosse passando e observando as imagens do mesmo modo como observei a estrada", diz ele. Moreira ficou assustado com o que viu: tristeza, solidão, abandono. "Vida assim tão jogada no mundo não é para mim. Passei a dar valor ao que tenho."

Ficou especialmente em sua memória a história de um uruguaio que anda pela América Latina por não querer amarras sociais. Moreira desconfia de que o acúmulo de objetos que se vê nos personagens traduza sua vontade de criar "uma memória, um passado ambulante".



Em volta do fogo

"Ficamos abanando o fogo e, quando a lenha está acabando, temos de procurar onde tem mais para acender outro fogo para nos aquecer"
Maria Gomide, atriz do grupo saltimbanco Carroça Mamulengo

Desde que nasceu, há 30 anos, Maria Gomide, atriz e produtora do grupo Carroça Mamulengo, está na estrada. Antes de completar dois meses de idade, ela já havia percorrido três estados do Brasil. O motivo é que seus pais, Carlos Gomide e Schirley França, criaram um grupo de saltimbancos, atores que perambulam de cidade em cidade.

Desde setembro de 2014, Maria, os pais dela, nove irmãos, os companheiros e companheiras dos que são casados, seus filhos, além de técnicos de espetáculos, totalizando uma trupe de 20 pessoas, se instalaram em Rio Acima (MG).

O cotidiano do Carroça Mamulengo é estabelecer-se numa cidade, criar uma agenda de apresentações (eles têm cinco peças no repertório) e, com o capital arrecadado, partir para outro lugar. "Ficamos abanando o fogo e, quando a lenha está acabando, temos de procurar onde tem mais para acender outro fogo para nos aquecer", diz ela.

Houve tempos em que o grupo ficava dois meses num só lugar. Agora, a temporada pode se estender por dois anos. "A vida de saltimbanco me ensinou a ter constância nas atividades, clareza no que é necessário para realizá-las e disposição para vencer um leão por dia, superando limitações e preconceitos", diz a atriz.

"Existe um olhar que menospreza os artistas ligados à cultura popular, os que fazem da rua o palco de sua arte", observa. Para ela, trata-se do "velho conflito" entre o conhecimento acadêmico e o notório saber. Mas as dificuldades não tiram seu encanto com a vida de saltimbanco. "Foi essa atividade que formou meu olhar sobre o mundo. Minha universidade é o Brasil, que conheço palmo a palmo", afirma.

"Somos ricos", brinca Maria Gomide. "Conheço sotaques, palavras, trejeitos, histórias, lendas, comidas, frutas, cheiros, cores, paisagens, águas – o gosto dela também varia", enumera. "Fomos abençoados com saúde, amigos, inspiração. Fazendo arte, nada nos faltou."

Pés no chão e olhos nas estrelas

“Se caminhando 25 minutos já começo a pensar as coisas mais absurdas, o que deve passar pela cabeça de quem está caminhando há 25 anos?”
Cao Guimarães, cineasta

O filme Andarilho (2007), do mineiro Cao Guimarães, deu muito o que falar. Ganhou prêmios, foi exibido em vários países, teve exibição na Mostra de Veneza (Itália). Na tela, estão três andarilhos – um gaúcho, um baiano e um mineiro, perambulando pelas estradas do Brasil. São pessoas que, por diferentes motivos, largaram tudo e saíram mundo afora.

“Todos encontraram outros modos de resolver as questões que o cotidiano coloca. É fascinante entrar em contato com uma forma de estar no mundo completamente diferente da vida condicionada por regras, limites, medos que temos”, afirma Guimarães.

“Vivemos numa sociedade que nos faz esquecer que o deslocamento é algo intrínseco ao ser humano”, diz o diretor. “Os andarilhos colocam uma questão fundamental na existência humana, que é o caminhar.”

Ele conta que o filme surgiu como uma especulação entre andar e pensamento, tema presente inclusive na obra de vários filósofos. “Caminhar vai trazendo pensamentos. Eu ficava imaginando que, se caminhando 25 minutos já começo a pensar as coisas mais absurdas, o que deve passar pela cabeça de quem está caminhando há 25 anos?”

Com os pés na estrada

“Viajar remete à curiosidade primária do ser humano de saber como o mundo é, remete também ao sonho e traz sensação de liberdade”
Antônio Bivar, escritor e tradutor de Na estrada

O escritor paulista Antônio Bivar é tradutor, junto de Eduardo Bueno, de Na estrada, de Jack Kerouac (1922-1969), a obra que se tornou um clássico, depois de ser consagrada pelo movimento hippie, tornando-se referência do nomadismo contemporâneo.

"O livro é uma viagem existencial, de autodescoberta, procurando conhecer a América", explica o tradutor, referindo-se aos dois personagens que vagam sem rumo pelo interior dos Estados Unidos. "O interesse de Kerouac era conhecer o ser humano, o que implicava conhecer o povo, e não só as celebridades", acrescenta. "A estrada, vagabundear pelo mundo, é uma grande universidade", afirma.

Bivar, na primeira metade dos anos 1970, perambulou por vários países europeus, conhecendo de perto o movimento hippie. O período está registrado em dois de seus livros (Longe daqui aqui mesmo e Verdes vales do fim do mundo, ambos da LPM Editora). Foi nessa época que ele adquiriu gosto por viagens e pelo estilo de vida simples, que cultiva até hoje.

Recentemente, o escritor percorreu 12 mil quilômetros viajando sozinho, de ônibus, pela América do Sul. Ele anda adorando o fato de poder conseguir passagens de graça, por ser da terceira idade, e viver com uma aposentadoria de dois salários mínimos (acrescida à renda que obtém com a venda de artigos para revistas).

"Sou eternamente grato por tudo que vivo e vivi. Deixa a sensação de ter entrado em contato com a magia da vida", afirma. "Viajar remete à curiosidade primária do ser humano de saber como o mundo é, remete também ao sonho e traz sensação de liberdade", afirma. Embora atribua seu prazer em viajar à sua "alma de poeta" e ao desejo de "fugir da prisão" que é São Paulo, ele observa que "pessoas comuns também têm este sentimento, embora refreado pela vida. A prova é a popularidade das agências de viagem".

As andanças de Antônio Bivar e de José Vicente (1945-2007), amigo escritor e dramaturgo, nos anos 1970, estão na elogiada peça Próxima parada, em cartaz no Rio de Janeiro.

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